sábado, 31 de outubro de 2015

Bancada religiosa avança e atua de forma suprapartidária

Os deputados estaduais Walter Cavalcante (liderança de movimento católico) e Silvana Oliveira (da bancada evangélica) têm se unido em votações "de ordem moral" na Assembleia Legislativa ( FOTO: Fabiane de Paula )
Em uma país onde a maioria da população se reconhece cristã, garantir a plenitude do Estado laico, mesmo que assegurado pela Constituição Federal, ainda é desafio para os próximos anos. Nas casas legislativas, as bancadas religiosas têm conseguido se unir em votações de temas considerados de ordem moral, como aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo, chegando a se organizar de maneira suprapartidária. Em geral, esses parlamentares têm sido liberados pelas legendas para votar pautas dessa natureza conforme suas convicções pessoais.
No Congresso Nacional, especialmente na Câmara dos Deputados, parlamentares ligados à bancada evangélica, muitas vezes associados a congressistas de outras crenças religiosas, formam um 'lobby' para barrar discussões que ganham contornos polêmicos. A aprovação do Estatuto da Família em comissão da Câmara, ao definir como núcleo familiar apenas casal heterossexual com ou sem filhos, é um exemplo recente da força da religião na pauta do Legislativo. A discussão ocorre com aval do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), membro da bancada religiosa.
Outra proposta enquadrada como integrante da pauta religiosa do Legislativo é a que dificulta o acesso ao aborto em casos hoje assegurados por lei, como quando a mulher é vítima de estupro. De autoria do presidente da Câmara Federal, o projeto foi aprovado neste mês na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) daquela Casa.
A proposição altera o Código Penal ao proibir a venda de substâncias abortivas, punir quem induzir ou orientar mulheres ao aborto, além de exigir exame de corpo de delito a mulheres atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em caso de estupro.
Discussões locais
A história se repete em âmbito regional nas câmaras municipais e assembleias legislativas, chegando a unir oposição e base aliada em determinados assuntos. Consequência dos debates sobre o Plano Nacional de Educação (PNE), os estados tiveram de discutir planos estaduais que seguissem as mesmas diretrizes do documento nacional.
A Câmara Municipal de Fortaleza, a exemplo de outras câmaras de vereadores, aprovou em junho plano de educação da Capital encaminhado pelo prefeito Roberto Cláudio, mas suprimindo trechos que garantiam a realização de debates no ambiente escolar sobre temas como diversidade sexual e gênero.
No dia da votação, o vereador Paulo Diógenes (PSD) fez um depoimento autobiográfico citando a discriminação e preconceito que ocorrem nas escolas, mas foi vencido pela maioria dos colegas. O episódio inverteu a lógica partidária, uma vez que aliados do prefeito impuseram a ele derrota na Casa, enquanto opositores, incluindo PT e PSOL, acataram a proposta integral do Executivo municipal.
Na Assembleia Legislativa do Ceará, o plano de educação, antes mesmo de tramitar na Casa, já gera polêmica. Aliados do governador Camilo Santana apelam para que ele libere a base a votar como quiser a proposta. A expectativa é que o debate acerca de gênero e diversidade seja rechaçado por aliados e opositores do Governo. Polêmica semelhante enfrenta Plano Estadual de Cultura, cuja tramitação está paralisada na Casa.
"O que é próprio da modernidade é o Estado laico. Ao ter uma participação forte de uma bancada religiosa que se comporta e age a partir de posições dogmáticas, a gente está indo contra o que se buscou sempre na modernidade, que é o afastamento das decisões do Estado de questões religiosas", explica o cientista político Clésio Arruda, professor da Universidade de Fortaleza.
Comentando a linha tênue de garantir um Estado laico em um contexto de super-religiosidade social, o analista político pondera ser necessário separar o papel do parlamento de crenças individuais. "Independentemente das pessoas terem suas convicções religiosas, o fazer normas é uma ação racional, tem que estar para além dos interesses racionais. Temos, por exemplo, novos arranjos familiares, famílias que estão se formando de forma contrária ao que uma moral tradicional estabelece", relata.
Crenças
Clésio Arruda acrescenta que a organização de parlamentares por meio de uma crença coloca-os independentes dos partidos em determinadas votações, como ocorreu na análise dos planos de educação nos contextos locais. "Em âmbito estadual e federal, temos uns grupos que se descolam da decisão do partido. Isso é um fenômeno novo, os grupos religiosos se comportando como apartidários", salienta.
Neste ano, o deputado Walter Cavalcante, do PMDB, que milita em grupos católicos, conseguiu aprovar na Assembleia Legislativa projetos de sua autoria inserindo no calendário oficial do Estado o evento Evangelizar é Preciso e a Marcha contra o Aborto. Ambos tiveram apoio quase unânime dos parlamentares, à exceção do deputado Renato Roseno (PSOL). As propostas colocaram do mesmo lado deputados católicos e evangélicos, da base e da oposição.
"A articulação entre as bancadas religiosas se dá somente em questões de ordem confessional e ideológica, como casamento gay, aborto e temáticas que dizem respeito a dogmas cristãos. Esse é o único ponto que votam de forma suprapartidária. De ordem política, eles são bem heterogêneos, as igrejas liberam para que parlamentares votem de acordo com sua consciências", explica o cientista político Edir Veiga Siqueira, professor da Universidade Federal do Pará.
Cristianismo
O docente contextualiza que a formação do País calcada no cristianismo dificulta a separação integral entre política e religião, embora essa simbiose já tenha sido, em tese, superada por revoluções dos séculos passados. "Toda a agenda de um Estado laico sempre encontrou uma enorme dificuldade no Brasil. A emenda constitucional do divórcio só passou no contexto do AI5 (no período do regime militar), quando o governo perdeu maioria no Congresso", alega. "Uma das grandes conquistas das revoluções liberais, inglesa, americana e francesa é a separação entre Estado e religião", completa.
Acerca da presença marcante de feriados católicos no calendário do País, Edir Veiga também atribui à influência portuguesa na colonização brasileira e explica que é improvável que outras religiões consigam inserir seus feriados próprios na agenda do Brasil. "Na época do império, a religião era o catolicismo, era uma tradição popular (...). E as novas religiões não têm força suficiente para barrar, elas tentam nomear ruas com os nomes de seus comandantes também", complementa o professor.
"Tem que separar o joio do trigo. A sociedade é muito religiosa, mas tem que estar na esfera privada, o Estado é um ente público republicano, porque tem que proteger tanto o ateu como o judeu", pontua.

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