A história de vida de Padre Cícero Romão Batista (1844-1934), sobretudo a relacionada à saúde, suscitou um estudo aprofundado sobre a plausibilidade de essa figura mitológica do sertão nordestino ser portadora de espondilite anquilosante, doença inflamatória crônica que afeta as articulações do esqueleto axial (coluna, quadris, joelhos e ombros).
O achado foi apresentado pelo reumatologista cearense Francisco Airton Castro da Rocha, professor e pesquisador da Universidade Federal do Ceará (UFC), durante o Congresso Brasileiro de Reumatologia, realizado em outubro, em Curitiba, com o título "Padre Cícero teria uma doença reumática?"
Questionamentos
O interesse pelo tema, segundo o médico, ocorreu de forma fortuita, após ler a biografia "Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão" (Companhia das Letras), do escritor cearense Lira Neto. Mais que enxergar a figura do homem religioso por trás do líder popular, o médico se deteve a analisar e questionar a série de doenças e diagnósticos atribuídos ao Padim Cícero, nome pelo qual é reverenciado pelos milhares de romeiros que visitam Juazeiro do Norte.
A curiosidade pelos achados o levou a levou a ler, ao todo, 12 obras sobre a vida do religioso, cujas imagens o retratam sempre com a cabeça inclinada para o lado direito, portando batina, chapéu e seu cajado. Em sua pesquisa, Dr. Airton Rocha também destaca as obras "Milagre de Juazeiro" (Ralph Della Cava), e "Padre Cícero que Conheci" (Amália de Oliveira), essenciais para elucidar a bio-história de seu objeto de estudo.
Para o presidente da Sociedade Cearense de Reumatologia, Dr. José Eyorand Castelo Branco de Andrade, "a entidade vê com bons olhos, pois busca identificar uma doença para a qual não se tinha ainda chamado atenção. São propostas, indícios e tudo leva a crer que o religioso poderia ser portador de espondilite". Destaca que, ainda hoje, muitas pessoas acometidas dessa doença sequer o sabem e, em média, leva-se oito anos para o diagnóstico, após o início dos sintomas.
Histórico dos sintomas
No artigo "Padre Cícero Romão Cícero - Aspectos sobre a saúde do Patriarca de Juazeiro", o reumatologista enumera uma série de indícios, que, aos olhos de um leigo, podem passar despercebidos. A começar pelo fato de, apesar de sua vida longeva, Padre Cícero apresentar o pescoço inclinado, fato particularmente visível quando tinha 44 anos (como mostra uma foto ao lado de sua irmã), e em várias outras posteriores revelando a existência de um desvio cervical lateral.
Outro ponto que chamou atenção foi o histórico de o religioso ter sofrido de dores lombares ao longo da vida, assim como de distúrbios do tubo digestivo (intestinos) e infecções de pele recorrentes (nos últimos anos de vida) e de manter uma posição anteriorizada (para frente) do tronco em relação à região lombar. "Em um vídeo da época, é claro observar que ele tem uma postura rígida e que se desloca em bloco, movendo toda a coluna", diz o reumatologista.
Justificativa do 'achado'
A probabilidade de o quadro indicar que o religioso era portador de espondilite anquilosante, à luz da realidade diagnóstica de hoje, é justificada por Dr. Airton Rocha por uma série de fatores, sendo o genético uma delas.
O componente hereditário - olhos azuis e cabelos louros de Padre Cícero (filho de pai português e mãe índia) - é um elemento a ser considerado, uma vez que a ocorrência de espondilite anquilosante está mais presente em indivíduos brancos caucasóides (do norte europeu).
Em relação às fortes dores na coluna, Dr. Airton Rocha descarta a possibilidade de o padre ter escoliose (como é aventado em suas biografias), uma vez que, ao contrário do imaginário popular, a escoliose não é uma doença que provoca dor e raramente acomete a coluna cervical. Sobre Padre Cícero é relatado que ele sofria dores frequentes, em plena maturidade, que chegaram a prostrá-lo e indicavam não depender da realização de algum tipo de esforço físico. Isso sugere ter sido tratado de dor de caráter inflamatório, como é próprio desse grupo de doenças inflamatórias da coluna (como as espondiloartrites).
Patologia de base
O reumatologista cita outra passagem do histórico de saúde do religioso na qual, aos 60 anos, ele ter sido diagnosticado por seu médico, Dr. Antonio Mariz, como portador de gota. "Possivelmente, seria consequência da doença de base (espondilite), uma vez que Padre Cícero tinha dieta frugal e fazia jejuns prolongados, abstêmio de bebida alcoólica, um perfil muito diferente de quem tem gota (artrite associada à deposição de cristais de ácido úrico). Devido aos problemas intestinais, o religioso, por volta dos 70 anos - teve a dieta líquida restrita a chás e água de coco", relata o pesquisador.
Esse recorte de evidência sugere que problemas digestivos, que estariam relacionados às espondiloartrites, lhe levaram a pensar que a "água-do-Juazeiro", por não estar adequadamente tratada, lhe prejudicasse. Na verdade, poderia se tratar de distúrbios intestinais que acometem pessoas com espondiloartrites, como a espondilite anquilosante. Sugere que o uso do cajado, além de sua função pastoral, tenha sido a forma encontrada pelo religioso para facilitar o apoio e permitir-lhe grandes marchas e trabalho incessante, para compensar a fragilidade de sua postura.
Além de submeter seus achados à crítica de seus pares, junto à Sociedade Brasileira de Reumatologia, Dr. Airton Rocha finaliza artigo que será publicado, em breve, em revista científica da área de reumatologia.
Outro olhar
Para examinar a legitimidade desse achado, o reumatologista José Tupinambá Sousa Vasconcelos realizou análise sob o título "Padre Cícero teria reumatismo". Segundo ele, a pesquisa faz parte do campo da bio-história, que envolve diferentes áreas, desde a médica, passando pela genética, antropologia, química, psicologia e a própria história. "Não é uma questão de diagnóstico".
"É possível admitir a plausibilidade nosológica para a fenotipia de espondiloartrite", afirma o reumatologista, para quem considera muito difícil o fato de o religioso - a quem são atribuídos vários milagres - ter sido acometido de escoliose. Outras possibilidades diagnósticas foram excluídas pelo Dr. Tupinambá, incluindo poliomielite, osteoartrite e osteoporose, além da gota, embora considere "ser razoável admitir que Padre Cícero teria sido portador de uma espondiloartrite".
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