Barro. Entre janeiro do ano passado e janeiro de 2017, este município, localizado na região do Cariri cearense, contratou, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), apenas 93 pessoas. Diante da escassa oferta de emprego, a cidade, que conta com pouco mais de 21 mil habitantes, está na rota do êxodo nordestino, um processo migratório secular de populações oriundas da região nordeste do Brasil para outras partes do País, em especial o sul e sudeste.
Só neste mês, mais de 300 barrenses deixaram a terra natal em busca de trabalho no cultivo da cana-de-açúcar no sudeste do País. A maioria deles alega "falta de oportunidade" para justificar o processo migratório. "Estou desempregado e não consigo encontrar trabalho aqui. A única alternativa é viajar para o sul e tentar a sorte por lá. É difícil deixar os familiares, mas é necessário", conta Francisco Pereira de Andrade. Assim como ele, centenas de homens partiram há uma semana em uma longa viagem de ônibus com duração de quase três dias.
Severino Gomes Alves, conhecido como "Bil da Iara", apelido que faz referência à comunidade rural de mesmo nome onde vive, se despediu do filho pela terceira vez. Para ele, apesar de saber que Francisco Lucas, de 23 anos, "está indo em busca de oportunidades", é sempre um momento doloroso. "Claro que é triste. São mais nove meses longe de casa. A gente sente, mas não há alternativa", resigna-se.
O distanciamento de familiares é apenas um dos vários obstáculos a serem enfrentados por aqueles que buscam trabalho longe de casa. A rotina puxada na lavoura, com jornadas de trabalho de 9 horas é outro fator a ser vencido pelo grupo que passa, em média, nove meses fora. No segundo semestre eles retornam e, no início do próximo ano, caso não consigam trabalho, o processo migratório se repete.
Exaustivo
A pesquisadora Tainá Reis de Souza, doutoranda da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), destaca "que muitos desses cortadores adoecem entre dez e 15 anos de atividade, exauridos por um ritmo cruel e desumano, assentado na forma de pagamento por produção".
Segundo dados que ela cita de outros estudos, um cortador desfere cerca de 3.500 golpes por dia, trabalhando com frequência cardíaca de 200 batimentos por minuto, e com queima de 3.500 quilocalorias, o que o obriga a ingerir oito litros de água durante esse processo.
"Os cortadores perdem sais minerais, sofrem cãibras no corpo inteiro com frequência, às vezes a cãibra é tão forte que chegam a urinar e defecar e há até casos de morte por exaustão", afirma a pesquisadora, ao destacar que, apesar da mecanização do corte nas usinas, a necessidade do corte manual ainda é existe, pois há áreas que a máquina não alcança. "O aumento da produção depende da capacidade física, de quanto consegue colocar seu corpo à prova", acrescenta Tainá.
Quem já se submeteu ao intenso trabalho concorda. "É cruel", pontua Francisco Juvenal da Silva. Ele passou os últimos dez dos seus 41 anos de vida no corte da cana-de-açúcar. "É muito puxado. A gente começa a trabalhar as 6h30 e, como recebemos por produção, o ritmo é forte", diz, ao afirmar que o ano passado foi o último dedicado ao sudeste. "Não vou mais. Não aguento", conta, ao lamentar não ter acompanhado o crescimento de seus filhos.
"Tenho três (filhos). A mais nova, de nove anos, eu quase não vi crescer. Passei dez anos trabalhando na cana e, com minha família, vivi apenas três ou quatro". O lado positivo, em sua avaliação, foi o valor que conseguiu juntar ao longo da década.
"Pé de meia"
Assim como Francisco, que conseguiu poupar e empregar parte do valor ganho na lavoura, outros fizeram o mesmo e hoje vivem com outra renda. José Pereira Lacerda, o Dedinha, montou uma oficina de motos com o dinheiro que foi poupado ao longo de 16 anos dedicados ao corte da cana. "Foi muito difícil, mas não me arrependo. Não tinha outra opção. Ralei muito e hoje consigo sobreviver do meu próprio negócio, mas, para montar, tive que trabalhar muito, e sempre longe da família. Minha filha, de 15 anos, também não vi crescer", depõe.
Na avaliação dos que já tiveram a milhas de distância de casa, o suor pode representar a realização de sonhos. Cada trabalhador consegue, em média R$ 1.500. "Comprei minha casa e terra", conta, contente, Paulo Gonçalves dos Santos, que passou os últimos três anos na lavoura. Antônio Cassiano da Silva ajudou o pai a comprar uma casa com os dois anos trabalhados na lavoura. Neste ano, entretanto, apesar de querer ter ido, ele "não foi selecionado".
Para os "campeões", termo dado ao trabalhador que consegue obter o maior volume de corte, a receita mensal pode variar entre R$ 2 a R$ 3 mil. "Esse valor ninguém consegue tirar no Barro. Por isso compensa o sacrifício", diz Severino.
"Fortes"
Cassiano explica que todo início de ano há o cadastro dos interessados. Esse número varia entre 400 e 500 candidatos. Eles passam por exames médicos e, só os "mais fortes", conforme descreve, são selecionados. "O trabalho é duro e, como todos dependem da produção, eles só levam os mais fortes", conta Severino. "Eles", a quem se refere, são os donos de usinas que, por meio de um intermediador nativo, envia médicos de São Paulo ao Barro para realizar os exames.
"É feito todo tipo de exame. Ninguém pode ir com problemas de saúde", conta Dedinha. Quem adoece durante o ofício, por exemplo, recebe tratamento e volta, com as passagens pagas pela indústria, à terra. No entanto, "ficam descartados e não mais conseguem ir nos anos seguintes". Cassiano repete o mesmo termo utilizado por Francisco Juvenal e classifica o ramo como "cruel".
Alojamento
Os "peões" como eles se tratam entre si, ficam em alojamentos fornecidos pela usina. Segundo relatam, são quartos onde ficam entre 8 a 12 pessoas. "Não tem o conforto de casa, mas não chega a ser ruim", afirma Dedinha. A alimentação, no entanto, divide opinião entre eles. "É boa. A gente já sai para lavoura com a marmita", recorda Cassiano. Já para Paulo e Francisco, "a comida nem sempre era bem feita".
O consenso, contudo, se dá ao apoio recebido pelos trabalhadores. Conforme confidenciam, anteriormente quando o trabalho era feito no "gato" - nome das empresas clandestinas - não havia nenhum benefício ou apoio. "Se a gente adoecesse, morria lá. Hoje, a usina dá apoio, faz exames e é tudo registrado, com horário certo para começar e parar de trabalhar", conclui Paulo Gonçalves.
Saudade
Para familiares e amigos que ficam, resta suportar a saudade. "Não tem emprego por aqui. Quem fica para trabalhar, não ganha nem meio salário mínimo, então é aguentar a saudade e esperar pelos três meses que eles passam em casa". No dia do embarque, choro e abraços apertados, nos meses que seguem pela frente, ligações e mensagens de textos atenuam a saudade.
Em alguns casos em que os familiares não dispõem de smartphones, por exemplo, resta apenas apertar a pequena foto 3x4 ao peito e torcer para o tempo passar depressa, tal qual são os golpes ágeis dos facões que cortam as imensas plantações de cana nas cidades interioranas de São Paulo, Capivari e Santa Bárbara do Oeste, principais destinos dos barrenses.
Contingente
300
Barrenses, pelo menos, deixaram a terra natal em busca de trabalho no cultivo da cana-de-açúcar no Sudeste do País, neste mês de abril
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"Fui dez anos seguidos. É um trabalho duro, cruel. Sem tempo para descansar durante o dia. Perdi o crescimento das minhas filhas. Mas era a única alternativa. Hoje eu já posso optar em não ir e me virar de outra forma"
Francisco Juvenal da Silva
Agricultor
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"É puxado. A gente trabalha muito e, como recebemos por produção, quanto mais suor, mais dinheiro no bolso. Eu fui três anos e decidir não ir mais, hoje trabalho na roça, que também é duro, mas fico perto da família"
Paulo Gonçalves dos Santos
Agricultor
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