01:00 · 29.01.2018 por Messias Borges/ Ingrid Coelho - Repórteres
"Minha mãe era inocente! Volta pra mim, mãe. Eu quero a minha mãe. Não vai embora!". O grito desesperado de um jovem, ao se despedir da mãe, morta na maior chacina da história do Estado, rompeu o silêncio do sepultamento das vítimas e levou todos às lágrimas, ontem à tarde, no Cemitério do Bom Jardim. A dor de ter um ente querido perdido, de uma forma inacreditável, feriu a cada pessoa presente.
Edneusa Pereira de Albuquerque tinha 38 anos, era dona de casa e tinha nove filhos. A mais velha tem 21 anos, dois filhos e oito irmãos para, a partir de agora, cuidar. Os órfãos são crianças e adolescentes - têm entre três e 17 anos.
A vítima morava no Barroso, próximo de onde foi morta, e costumava ir ao 'Forró do Gago' para se divertir. "Ela adorava dançar, gostava de festa. E era muito querida. Só a família não, mas todo o bairro está muito abalado. Todo mundo se reuniu para enterrá-la", contou uma amiga, que não quis se identificar.
Um ônibus carregou dezenas de pessoas para se despedirem de Edneusa. A comoção foi geral. "Há 14 anos trabalhando aqui, eu nunca vi um negócio desses", afirmou uma funcionária do Cemitério Parque Bom Jardim, ao fim do enterro.
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Raimundo da Cunha Dias, 48, e Antônio Gilson Ribeiro Xavier, 31, foram sepultados no mesmo Cemitério, horas antes de Edneusa. Em pouco número, a família de Raimundo da Cunha não quis conceder entrevista, por medo de que o pior ainda possa vir.
Antônio Gilson entrou no alvo dos criminosos por poucos minutos. Segundo familiares, ele estava chegando na festa no momento em que aconteceu a ação criminosa e foi executado a tiros. Natural de Jaguaretama, ele vivia em Fortaleza desde criança, residia próximo de onde foi morto e trabalhava em uma empresa de extintores. A família negou envolvimento do parente com a criminalidade.
Vendedor
Ontem também foi dia de se despedir de Antônio José Dias de Oliveira, 55. O simpático vendedor de lanches que gravou um vídeo poucos minutos antes de ser morto - que circulou pela rede social WhatsApp - foi enterrado no Cemitério Jardim do Éden, em Pacatuba.
Antônio José também tinha nove filhos e era tido por familiares e amigos como uma pessoa bondosa e trabalhadora. "Ele estava há poucos meses trabalhando com esse carrinho de lanches, queria muito montar esse carrinho. Ele também trabalhava como marceneiro. No que aparecesse trabalhava para sustentar os filhos", relatou um parente.
Um dos filhos do homem de 55 anos presenciou a morte do pai e ainda foi baleado na coxa. O adolescente foi levado ao Instituto Doutor José Frota (IJF), atendido e liberado. "A criança está bem, mas muito abalada. Ele viu o pai ser morto, estava na frente da barraca. O Antônio ficou entre um poste e a barraca quando foi atingido", contou o familiar entrevistado.
A cunhada de Antônio não resistiu aos tiros sofridos. Mariza Mara Nascimento da Silva, 37, passava pela frente da festa e também foi assassinada. Ela tinha seis filhos e também trabalhava como vendedora de lanches. A mãe da vítima destacou que resolveu disponibilizar os órgãos da filha para doação.
A maioria das vítimas da matança foram mulheres. A festa tinha entrada liberada para elas. Além de Mariza Mara e Edneusa Albuquerque, morreram Maíra Santos da Silva, 15; Maria Tatiana da Costa Ferreira, 17; Brenda Oliveira de Menezes, 19; Raquel Martins Neves, 22; Luana Ramos Silva, 22; e Renata Nunes de Sousa, 32.
Luana Silva tinha dois filhos, de um e 4 anos. Segundo os familiares, ela saiu de casa, no Bom Jardim, para ir à festa com primos e amigos - que sobreviveram ao tiroteio por terem se escondido no banheiro da boate. Renata Sousa também tinha dois filhos. Trabalhava como promotora de eventos e morava no bairro Couto Fernandes. Segundo parentes, ela estava nas Cajazeiras cuidando de uma residência de uma amiga e decidiu ir à festa, no 'Forró do Gago'.
Natanael da Silva estava no local a trabalho e foi executado. Ele era motorista do aplicativo Uber e estava indo deixar um passageiro na festa.
Feridos
Cinco feridos no atentado que resultou na Chacina das Cajazeiras continuam internados, em hospitais da Capital, principalmente no IJF. Quatro pessoas que também foram alvejadas foram liberadas, durante o dia de ontem, para voltarem para suas residências.
Opinião do especialista
'Uma tragédia humanitária'
A violência retratada na Chacina das Cajazeiras não é fato episódico, mas um novo capítulo de uma tragédia humanitária. Matar pessoas, nas periferias de cidades cearenses, é uma rotina. Apenas alguém que não vive esse cotidiano, como o do secretário da Segurança, André Costa, pode afirmar coisas do tipo "não há perda de controle" ou "não há motivo para pânico". Obviamente, se as chacinas ultrapassem as fronteiras das periferias o discurso seria outro, assim como o do secretário de Segurança. A Chacina das Cajazeiras, entre outros acontecimentos, demonstra que as facções dispõem de poder significativo, matando como, quando e onde querem. O Governo oferece pouca resistência e, em suas declarações públicas, deixa claro que não tem disposição para assumir a responsabilidade pelo enfrentamento da situação, insistindo em culpar vítimas e outros Poderes enquanto alega que "o trabalho está sendo feito". Conforme é possível observar, essa gestão apostou (como a anterior) em ações de policiamento ostensivo, com investimentos na Polícia Militar. O problema é que organizações criminosas estudam estratégias de Segurança e seu desmantelamento depende de outras formas de trabalho policial. Em nenhum lugar do mundo foram superadas pelo uso indiscriminado da força, mas por ações de inteligência, investigação, Justiça e investimento social nas populações vítimas da sua violência. Durante anos, no Ceará, pessoas mataram outras classificadas como "inimigos". Fizeram isso em disputas territoriais, depois pelo controle do crime e agora pelo extermínio de facções rivais. Em todo esse tempo, os governos trataram a situação como uma "guerra entre bandidos", sem consequências para "pessoas de bem". Assim, surgiram grupos socializados entre matanças e reverter essa situação não é simples. Para isso, é preciso uma mudança profunda na maneira de gerir o campo da Segurança Pública e Justiça. Enquanto isso não acontece, o Ceará se consolida como um lugar em que imperam graves violações aos direitos humanos das populações mais pobres, com anuência de seus governantes
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