sábado, 24 de fevereiro de 2018

Artesão constrói instrumentos musicais de objetos reciclados

Aécio manuseia o instrumento que ele mesmo fez a partir de peças recicladas ( Fotos: Antonio Rodrigues )

Os instrumentos, embora feitos com material que foi jogado no lixo, após finalizados, apresentam uma rara beleza, além de ganharem "vida própria" na mão de outras pessoas
Esta sanfona, fabricada por Aécio é, uma das peças do seu ateliê mais interessantes e que chama a atenção de quem a vê de perto
Crato. O sonho de seguir os passos do ponta-esquerda Valdemiro, seu pai, fez o ainda garoto, Aécio Ramos virar jogador de futebol; mas a carreira de atleta durou só até os 24 anos, quando resolveu se dedicar ao artesanato. A inspiração para fabricar objetos veio de sua mãe, a cantora, atriz e artesã Josefa Rodrigues da Conceição. Ela produzia muitos itens, principalmente de barro, como panelas, potes, pratos e quartinhas. Foi esta mulher multitalentosa que ensinou o garoto, de apenas oito anos, fazer um violão de tala de coqueiro, o primeiro instrumento musical de um dos luthiers do Cariri.
"Desde pequeno comecei a aprender com ela. Eu não tinha como fugir. Meu pai foi jogador. Aprendi a jogar bola com pai e fabricar com mãe", afirma Aécio Ramos. A música está na sua família desde então, e inspirou seus dois filhos a trabalharem profissionalmente com ela.
Mas a trajetória de moleque no Crato teve importante passagem por São Paulo, onde atuava como jogador profissional. Após encerrar a carreira, o artesão começou a estudar Música na Academia de Música e Artes (AMA) e fazer 43 cursos profissionais nas mais diversas áreas como pintura, mestre de obras, funilaria. Tudo em solo paulista.
"O futebol, todo garoto sonha. Eu era meia esquerda, fazia muito gol. Era armador do time. Mas não podia ficar só naquilo. Como recebia por jogo, se ganhasse a partida o dinheiro era melhor. Mas como já tinha afinidade com a música, percebi que, com ela, faria mais pelas pessoas", explica o artesão, que voltou ao Crato e começou a estudar a fabricação dos instrumentos. Paralelamente a isso, tocou em algumas bandas locais.
Com os vários cursos no currículo e habilidade com trabalhos manuais, Aécio Ramos começou a produzir os instrumentos musicais com o material que encontrava no lixo. Resto de guarda-roupa, armários, cadeiras de plástico, entre outros móveis. Tudo se transforma em suas mãos. Ele já fez violas, violão, violoncelo, violinos, pandeiros e desenvolveu mais de 15 modelos de rabecas. Há dois anos se arriscou a fazer um acordeon.
Com uma lâmina de serra, lixa, trena e estilete sem ponta, fabricados no fundo do quintal, os instrumentos ganham forma. "O primeiro objetivo é limpar o meio ambiente e dá vida às plantas. A doação de marcenaria é muito pouco. As pessoas jogam nas margens do Rio Grangeiro ou deixam nas calçadas. Eu conheço as madeiras, imbuia, jacarandá. Até o pó de madeira a gente usa. Não se perde nada. Estes instrumentos, 90% é do lixo. Eu mesmo só vivo no meio do lixo", brinca Aécio.
Projeto
Até o verniz, que dá brilho aos instrumentos, é natural. Uma peça pequena, como uma rabeca, é feita em um dia. Elas são vendidas para manter o Projeto Cultural Edit Mariano (Procem), criado por ele e sua esposa, Tereza Neuza de Oliveira, que oferece aulas de música e dança para a comunidade, gratuitamente. O próprio Aécio ministra a oficina para confeccionar os instrumentos com as crianças, enquanto ela coordena os grupos de maracatu e afoxé.
O Procem tem 22 anos e seu nome homenageia a mãe de Tereza Oliveira, Edit Mariano, presidente do bairro Zacarias Gonçalves por muitos anos, que realizou atividades sociais, como arrecadação de cestas básicas e luta por moradia. "Ela inspirou a gente a construir esse projeto", destaca Tereza. Tudo começou com o grupo Improviso, que contava com a participação do casal. A música os uniu e, hoje, eles já ensinaram mais de mil crianças a tocar instrumentos, dançar e cantar. Nas oficinas, os alunos ganham os próprios instrumentos, certificado e apostila. Uma vez por mês, distribuem uma sopa para a comunidade.
O projeto conta com o apoio de dez instrutores e quatro "padrinhos" que ajudam financeiramente. Sem recursos públicos, a venda das peças fabricadas por Aécio é uma das fontes. Uma rabeca, por exemplo, chega a custar R$ 300.
Felizmente, o número de encomendas sempre é alto. "Estou aqui com dez encomendas", conta o artesão que já vendeu instrumentos para pessoas de São Paulo, Rio de Janeiro e até para os Estados Unidos.
"Tudo vende. As pessoas usam para enfeitar a parede de uma casa. Eu faço a decoração nos instrumentos. As gravuras não são tinta, é feito com fogo, como os ancestrais faziam. Ele é único no mundo. São diferentes com esses detalhes. Desses aqui você não encontra em nenhuma loja", garante Aécio Ramos.
Pagamento
No começo, o Procem fazia eventos e excursões para ajudar pessoas carentes. A escola de música começou na Igreja do bairro, mas a Diocese não permitiu o uso do espaço sem pagamento. Desde então, ele funciona no fundo do quintal da residência do casal. No início, eram cinco crianças com aula de violão, que se ampliou para a percussão, baixo e teclado.
Um coral de crianças também foi montado. Há quatro anos, o Maracatu do Procem e o Tambores do Axé também animam o projeto. "No começo era só a comunidade. Hoje em dia não é assim", pontua Tereza.
Nestes 22 anos, várias crianças, depois de adultas, começaram a trabalhar com música. Outras estudam Licenciatura em Música na Universidade Federal do Cariri (UFCA), a partir do contato com o projeto.
A inspiração começa bem cedo, como no caso da adolescente Andrecyelle de Souza, de 15 anos, que estuda regência na Escola Técnica Virgílio Távora. "Eu me identifico muito porque, desde pequena, convivo com essa família".
Andrecyelle entrou no Procem aos 4 anos de idade e, 11 anos depois do primeiro contato com instrumentos de percussão, canto e coral, ela participa do grupo Tambores de Axé. A escolha de estudar regência não foi por acaso. "Vai ser um futuro bom para mim, pois desde pequena tenho essa paixão por música", completa a estudante.
Enquanto Jorge Luiz de Oliveira, filho caçula de Aécio e Tereza, afirma que sua trajetória no projeto se confunde com sua vida, pois acompanhou desde os seis anos as aulas dos pais. "Não carrego o peso da obra de meu pai. Eu o vi tocando e me senti abrilhantado. Ele nunca me forçou a gostas de música. Até escondia o violão e eu pegava. Partiu de mim, do meu interesse pessoal", destaca o rapaz que, aos 23 anos, é músico e trabalha com harmonia.
Percepção
Jorge Luiz garante que o Procem foi importante para adquirir uma melhor percepção musical, pois ele tem um problema de audição que foi minimizado com a vivência. "Eu aprimorei meu ouvido. A gente leva um pouco da nossa musicalidade lá na frente. Com 16 anos na música, tendo novas amizades e criando novas influências", completa. Hoje, ele ainda participa, ajudando Aécio na afinação dos instrumentos.
Mesmo com as dificuldades de manter o projeto sozinho, Aécio e Tereza se motivam para continuar buscando parcerias. "Tem mês que é difícil acontecer as coisas", confessa o artesão. Ele chegou a reunir 40 crianças em uma oficina "e ficar em tempo de enlouquecer", brinca.
"A gente quer fazer porque está na nossa alma. Quando eu era criança, pelejei para me formar em Medicina. Ano passado, fiz uma prova e não deu. Mas não desisti não. Tô só com 61 anos", conclui.
Mais informações
Projeto Cultural Edit Mariano
Endereço: Avenida José Orácio Pequeno, 39, Zacarias Gonçalves (na subida para o Lameiro)
Telefones: (88) 99649 3268 - (88)
9 8801 9384

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