sexta-feira, 26 de outubro de 2018

José Flávio Vieira, o memorialista da contracultura

(Foto: Alana Soares)

José Flávio Vieira transpira cultura. Arquiteto das palavras e amante de enredos inusitados, em seus livros conta as histórias de um passado não tão distante do Cariri cearense. São os mitos e as lendas, os causos e as curiosidades do velho cotidiano. "Escrevo para minha tribo", determina em um movimento consciente.

Dizer que Zé Flávio é médico, escritor, dramaturgo e poeta pode não bastar para descrevê-lo diante de seu nível cultural e entusiasmo com as artes. Criou-se dentro da livraria e seu pai era professor de Língua Portuguesa, tendo todas as boas condições para o apreço pela literatura. Tanto que se diz muito mais leitor do que escritor e rejeita a ideia de que "escrever é para poucos" por considerar desestimulante.

E por ter essa vocação para a sensibilidade, encaminhou-se para trabalhar na cura das dores e doenças - tanto do corpo, quanto da mente.

CONTRACULTURA

Vivendo entre mentes inquietas, participou dos principais movimentos contraculturais dos anos 1970 e 1980 na região. Mesmo cursando Medicina no Pernambuco, quando voltava ao Cariri de Abdoral Jamacaru, Rosemberg Cariry, João do Crato, Ermano Pena, Luiz Carlos Salatiel, Pachelly Jamacaru, Luiz Fidelis e tantos outros, viu-se criando e produzindo arte democratizada de uma nova maneira.

"Foi uma época muito florescente no Cariri", afirma. "Apesar da cortina de chumbo feita pela Ditadura Militar, vimos nascer um grande e importante movimento de arte, teatro, cinema e literatura independente jamais visto". Ele fala da organização de Festivais da Canção, Salões de Outubro e Chapada Musical do Araripe (CHAMA), que colocaram o Crato no mapa da cultura.

"É interessante esse alinhamento de planetas que rodou o mundo todo e já no final dos anos 70 acabou batendo aqui", comenta. Em sua análise, não haveria outra hora para a cultura sair das instituições e ocupar as praças. "De repente se tem um movimento livre que nos deu nomes ainda hoje presentes de maneira marcante na cultura da região e que fizeram a diferença", diz.

UM OTIMISTA

Impossível ocultar os rastros desse movimento em sua vida a partir de então. O bom humor ao abordar temas, a união da fala erudita com o palavreado nordestino, a preocupação em contar a história através de lições e imprimir em seus enredos a delicadeza da arte como instrumento político em sua concepção mais ampla.

De lá para cá, cinco títulos com temáticas diferentes levam o nome do doutor. "A Terrível Peleja de Zé de Matos com o Bicho Babau nas Ruas do Crato" (2003), "Matozinho vai à Guerra" (2008),  "O Mistério das 13 Portas no Castelo Encantado da Ponte Fantástica" (2011), "A Delicada Trama do Labirinto" (2013) e “Dormindo a borda do abismo: A Medicina no Cariri Cearense” (2018).

Imperativo danado, metódico e perfeccionista, Zé Flávio se mostra um otimista no que se refere ao interesse popular pela literatura e no surgimento de novos personagens que agitem a cultura. "Sempre houve quem pensasse no efêmero e quem pensasse na eternidade", dispara. "Não tenho romantismo de achar que o velho é sempre melhor que o novo".

Para ele, tudo é um processo, inclusive a própria forma de fazer literatura no Cariri. "A escrita memorialista é forte na região. Temos romancistas e poetas pontuais, de momentos específicos", comenta. "A preocupação com a memória é algo nosso. As gerações anteriores tiveram, essa agora não tem tanto e os governantes não tem nenhuma". Atrevo-me a dizer que ele mesmo é um memorialista que busca novas maneiras de contar as memorias. Rindo, admite o fato.

"Escrevo para a minha tribo. Sobre minha tribo. Da mesma maneira é quando leio Dostoiévski e acho bonito porque estou lendo a realidade de lá, quando lerem nossa realidade também vão entender a diferença e ver a beleza que é", analisa o escritor que ainda se inspira durantes conversas de consultório.         Site Miséria

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