domingo, 24 de fevereiro de 2019

Patativa do Assaré: 110 anos de palavra viva do gênio do Sertão


A casa onde nasceu Patativa, na Serra de Santana, traz relíquias da história do poeta. (Foto: Melquíades Júnior)

"Vão na frente que eu vou atrás. Levando as traia". Era o fim da meia-jornada. O agricultor brocou cedo a terra. Saiu cedinho, quando o sol entrou. Belinha coou o café pra viagem do marido com os filhos até o pedaço de roça. Quem vive no sertão brabo de enxada na mão não tem tempo de sentar. A depender do destino, o chão batido vira mesa, cama e até altar, envolto pelo roçado. Sertão só sabe quem vive. Chover é dúvida. Certeza, só na fé. Planta sem saber.

Mas perto da hora do almoço junta tudo, todos, e vai embora.

Inês é encucada:

- Pai toda vida só vai atrás da gente, sozinho. Num quer ir junto, diz, olhando pra trás e vendo o silêncio.

Em menos de meia-légua de pisada no chão da Serra de Santana, Antônio, atrás, parece que voa. Tá ali, mas não tá.

No fim de tarde, todo mundo bota as cadeiras pra fora. A calçada dá justo pro sol, que vai embora. Ele desce e os mosquitos sobem. Mas quem vive no sertão não tem casca fina.

Encadeando palavras
Antônio convoca atenção e diz uns dizeres falados como se estivesse cantando. Uma frase atrás da outra. Uma palavra que combina com outra duas frases depois. Eram versos e rimas. "As corra mair linda".

Nesse tempo, o pai já soltava poesia, só não sabia de onde vinha, mas o dia dela saber chegaria.

"Eu nasci ouvindo cantos/ Das aves de minha terra/ E vendo os lindos encantos/ Que a mata bonita encerra/ Foi ali que fui crescendo/ Fui lendo e fui aprendendo/ No livro da Natureza/ Onde Deus é mais visível. O coração mais sensível/ E a vida tem mais pureza".

- De onde pai tira tudo isso?
- É Deus que manda.

Foi daí que Inês percebeu: o pai andava atrás pra ter tempo com o divino. Devia sussurrar no seu ouvido, soprando palavras de semente. No tempo de chegar em casa, crescia e dava fruto. Essa era uma colheita certa.

Desce do céu, sobe a serra
Deus visitando onde quase ninguém vai. Um pedacinho da Serra de Santana, prima pobre, comprida e alta de Assaré. Nunca se lembram dela, a não ser em tempo de eleição. A vantagem, dizem os de lá, é que no outro tempo é menos gente perturbando.

Hoje, o desassossego é outro e bom: "mei mundo de gente vem aqui conhecer onde pai nasceu", diz Inês Batista. Pai é Antônio. E se antes, quem quisesse saber dele, perguntava por Senhorzinho, hoje em dia é só Patativa. Patativa do Assaré.

Se ele já tinha um tempo com Deus, sua morte foi reencontro. Não antes de ver a fama. Primeiro, a de perto, nas andanças pelo Cariri. Depois, bem longe.

Rodou pelas bandas do Norte, conheceu outros Nordestes. Mas foi a radiofonia sua internet. Ouvidos eram atentos à sua passagem pela Rádio Araripe, no Crato. José Arraes era um. Homem importante dos lados de Pernambuco, irmão de Miguel Arraes, este que virou governador daquele Estado. Atento às pelejas sertanejas, criou em sua gestão dois programas para o homem do campo: Vaca na Corda, para financiar gado, e o Chapéu de Palha, pra ajudar o agricultor na entressafra.

Pois foi Zé, irmão de Miguel, um dos grandes financiadores ao primeiro livro do poeta: Inspiração Nordestina (1956), aos 47 anos. Dali já corria mais longe o canto sertanejo. Luiz Gonzaga ouviu no rádio Patativa com João Alexandre, outro artista popular. Queria comprar aquela letra e foi ter com autor, mas o poeta não é de vender.

"Triste Partida" ganhou o mundo na voz do "Rei do Baião". Era retrato do sertanejo retirante nordestino. Viajantes da esperança, ainda que pobreza ambulante. No rincão seco, vai sem querer. Fome é a precisão, Deus é o guia.

Setembro passou/ outubro e novembro/ Ja tamo em dezembro/ Meu Deus, que é de nós?.

Virou hino. Quem vê hoje, pensa que a fama lhe percorreu toda a vida. Mal sabem que, bem dizer chamado 'velho', era um poeta popular pouco reconhecido em suas próprias beiras. Sentava no banco da praça que dá para a Igreja de Nossa Senhora das Dores, em frente de casa. Passava a tarde ali, matutando o tempo (ou com o divino).

Jaqueline, filha de Araci, fez por muito tempo os encarregados dele. Morando no lado oposto da praça, estava sempre a postos pra acompanhar o poeta onde precisasse. Um pagamento, pegar remédio ou dar notícia do que se passa na cidade pequena, mas cheia de histórias. Era mulher de confiança. Serviu-lhe até casar e partir. E fazer falta.

Inês Batista
A riqueza de ser pobre

"O povo mesmo dizia: 'Patativa é besta', se quisesse ser rico ele era. Tanta poesia bonita por aí", lembra Inês. Mas pra quem sabedoria é sabença, riqueza também seria outra coisa:

- Eu não vou me aproveitar de um dom que Deus me deu.

Mesmo depois da fama pelo Brasil, chamado que era para os salões, voltava mesmo era pra seu próprio torrão. Virou queridinho dos poderosos (ai de quem não fosse amigo do poeta), lembrado que era até por governador. Educadamente atendia os chamados - já sabia o que representava. O desejo, depois, era estar em casa. Quem escreveu a triste partida bem sabe a alegria que é voltar.

"Por isso que pai tem o nome que ele tem. Isso ajuda muito as pessoas a gostar dele. Nunca quis se envaidecer com as poesias", conta Inês.

Patativa, inspirado, recebia a mensagem a qual também era, como quem vive o que rima. Falava da roça, do vaqueiro. Podia fazer poesia inspirado em Luís Vaz de Camões, seu semelhante em genialidade com as palavras (e ambos eram cegos do olho direito) ou nele próprio, num português desregrado, mas com métrica e sentimento.

Nos tempos de cantoria, o homem de quem brota poesia saía com viola na mão e os versos na cabeça. Cantava e declamava rimas de improviso ou na gaveta da memória. Dá para comparar com as gavetas enormes do cartório da cidade, cheio de fichas e pastas. Pois é como se fosse cada ficha uma poesia. Nas pastas, os motes para cada assunto. Patativa tinha a memória de um cartório inteiro!

Mesmo perto de morrer, com mais de 90 anos, se pedissem pra declamar um poema de 32 estrofes, cada uma com oito versos, ele dizia. "E se pedisse outra, ele continuava outra, sem titubear", lembra Inês, filha que guarda saudade. Aos 74 anos, fala da meninice, porque foi intenso viver com Belinha e Senhorzinho. Tem um aperto no peito, porque queria cuidar mais do pai. Recorda e angustia como se fosse ontem a voz grave e rastejante de quem se sabia mais perto do que é derradeiro:

- Minha fia, se for pra mim morrer, me traga na sua casa. Queria morrer na sua casa.

- Pai, não diga uma coisa dessa...

A morte é a única certeza da vida, também a mais inesperada.

O poeta já vivia no centro de Assaré, não mais na Serra de Santana, onde ainda está parte da família. A cidade tem mais recursos. No Centro, morava parede e meia com o doutor Hernandes, e um pouco mais afastado tinha Dr. Laécio. "Serra de Santana é um lugar sem vida pra quem tá doente", concluem os filhos.

A ironia é que o homem morto, de poesia viva, é quem reacende toda a chama do lugar. De Patativa do Assaré virou Assaré do Patativa, a "terra da poesia popular", diz a placa de boas-vindas na entrada da cidade. Com uma foto inconfundível: de chapéu e óculos escuros, para tirar de vista a cegueira de um olho fechado.

O lugar lembra o poeta. Por esses dias, pesquisadores, amigos e populares se chegam à Serra de Santana e aos espaços locais de poesia nos 110 anos do cinco de março de 1909. Conhecer sua história, manter memória. Os filhos (quatro vivos, de 14) recontam. Mas Inês, João, Afonso e Pedro sempre têm novidades a dizer sobre o pai, poeta interminável.       Diário do Nordeste

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