Autodidata, o luthier foi nomeado Mestre da Cultura cearense no ano passado. (FOTO: ANTONIO RODRIGUES) |
Aos
sete anos de idade, o pequeno Francisco Gildamir de Sousa das Chagas se
aventurava na escultura de madeira inspirado no trabalho de seu avô, o
marceneiro Pedro de Souza Chagas, que era conhecido em Aurora como "Mestre
Pedro". A madeira que sobrava da fabricação de móveis, o menino pegava
para fazer suas primeiras peças. A brincadeira virou profissão e, aos 61 anos
de idade, Gil Chagas, agora escultor e luthier (profissional que constrói e
repara instrumentos de corda), se viu, em fevereiro deste ano, ser nomeado como
Mestre da Cultura cearense.
De
105 pessoas de todo o Estado inscritas no edital "Tesouros Vivos da
Cultura 2018", lançado em junho do ano passado, na categoria "Pessoa
natural", apenas 11 foram contempladas. Destes, sete são da região do
Cariri. Além de Gil, em Aurora, Juazeiro do Norte fez três representantes,
Crato conseguiu dois e Porteiras teve um eleito. Gil Chagas passa a ser, ao
lado de Antônio Pinto, que também fabrica instrumentos musicais, os únicos
aurorenses na lista de mestres da cultura do Ceará.
Trajetória
Gil
Chagas nasceu em Juazeiro do Norte, mas, aos três meses de vida, mudou-se para
Aurora. "Eu me considero aurorense", garante o escultor. Seu pai,
José de Souza Chagas, marceneiro como seu avô, achou que na pequena cidade
teria melhor retorno financeiro do que na terra do Padre Cícero. "Eu já
tinha a marcenaria no sangue mas queria algo mais", lembra Gil.
Para
ele, seu avô trabalhava melhor que seu pai no ramo, porque "fazia umas
peças mais sofisticadas, curvadas, que chamavam atenção". Cedro,
jacarandá, cerejeira eram algumas das madeiras utilizadas por pai e avô. Como
cresceu dentro da serraria, assistia seu avô trabalhando com muito gosto. De
tanto observar com atenção, Gil foi aprendendo o ofício. Autodidata, alcançou
seu objetivo.
Foi
como escultor, fazendo ex-votos para os fiéis de mártir Francisca, santa
popular de Aurora, que Gil começou a ganhar dinheiro ainda criança. "Eu me
considero escultor e devo isso a mártir Francisca. Comecei fazendo pé, mão,
olho. Ela morreu em 1958, no ano que nasci. Pra você ver, nessa época já
começou a obrar milagre", acredita.
Depois
de se destacar na região, mudou-se para Salvador (BA), berço da cultura no
Nordeste, onde trabalhou por dois anos até retornar ao Cariri. Largando a
marcenaria, se dedicou apenas à escultura, seu grande prazer. Da madeira, criou
sua família e seus dois filhos, uma menina e um menino. Porém, no início deste
século, a paixão pela música fez Gil Chagas produzir seus primeiros
instrumentos. É deles que tira a maior parte do sustento.
Ofício
Em
seu ateliê, Gil passa o dia inteiro trabalhando na madeira. Uma rabeca sua
demora 15 dias para ser feita. "Eu faço com capricho, porque pode ser
usada como violino. No mês, eu só faço duas", explica. Já as esculturas e
talhas, apenas por encomenda. Já os brinquedos e invenções inusitadas ainda são
feitas quando se sente à vontade.
Os
instrumentos musicais são mantidos em estoque e vendidos, em sua maioria, para
outros estados, após serem divulgados pelas redes sociais. Um violino, por
exemplo, custa R$ 2,5 mil. A rabeca, sai por R$ 1,2 mil. Já o modelo que criou,
com três cordas, mais simples, vende por R$ 600. "Aqui e acolá faço uma
talha, mas instrumento sempre tenho em estoque. Antes eu fazia tudo e deixava
estocado, mas hoje as vendas pararam mais. Anteontem veio uma encomenda e vou
mandar para Bahia", comemora.
Experimentos
Como
inventor, cria novos instrumentos musicais como o "berimbeco", que
tem formato de berimbau e afinação de rabeca. Da pesquisa na internet, também
reproduziu um saltério, criado há 300 a.C. Buscou ainda inovar, fazendo rabecas
ilustradas com pirografia de Cego Aderaldo, Luiz Gonzaga e Patativa do Assaré.
Se não quiser nenhum destes personagens estampados, o cliente pode mandar uma foto
que o luthier cria o desenho a partir dela, garante o Mestre.
"Gil
surpreende com um trabalho limpo, bem acabado e dentro das normas da luteria, o
que não invalida sua criatividade de escultor bem-sucedido. Ele ama as rabecas
e faz cada uma como se fosse única e autoral. Este é o 'segredo' de sua
grife", classifica o professor e jornalista Gilmar de Carvalho, que
durante pesquisa sobre a cultura popular do Cariri conheceu o escultor
aurorense em 2004.
Mestre
da Cultura
Gil
já havia tentado ser eleito mestre da cultura há três anos. Não conseguiu.
Chateado, acabou desistindo nas edições seguintes. Contudo, depois de ser
alertado sobre o lançamento do edital, ano passado, se empolgou novamente. Com
ajuda do maestro Wagner Leite, se inscreveu mais uma vez. "Eu pensei que
não tinha dado certo, até receber a carta", confessa.
Os
critérios utilizados para eleger um mestre são: reconhecimento público e/ou
comunitário da tradição cultural e sua contribuição para a valorização da
diversidade cultural no Ceará; relevância da vida e obra voltadas para a
cultura tradicional no Ceará; experiência e vivência dos costumes e tradições
culturais; permanência na atividade e capacidade de transmissão e partilha do
fazer cultural. O número de mestres reconhecidos pelo Governo foi ampliado, em
2017, de 60 para 80.
Apoio
Caso
eleito, o mestre é diplomado com o título de "Tesouro Vivo da
Cultura", cujo registro deve ser feito em livro próprio pela Secretaria de
Cultura do Estado. Além disso, tem seus projetos recepcionados preferencialmente
quando submetidos a certames públicos promovidos pela Pasta. Outro benefício é
um auxílio financeiro, pago mensalmente, com o valor de um salário mínimo. O
contemplado também poderá receber o título de "Notório Saber em Cultura
Popular" pela Universidade Estadual do Ceará, mediante avaliação. No caso
de Gil Chagas, além de tudo isso, o reconhecimento como Mestre fez crescer as
vendas de esculturas e rabecas, apesar de querer se distanciar, aos poucos,
desta primeira atividade. "Música é minha paixão", finaliza. Diário do Nordeste
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