Desde
que a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) divulga os dados
relativos a crimes sexuais - que englobam estupro, estupro de vulnerável e
exploração sexual infantil -, os registros nunca foram tão altos. Entre janeiro
e setembro deste ano, foram 1.478 casos, mais que em iguais períodos de 2018
(com 1.376) e 2017 (1.328). Entre o ano passado e o atual, o aumento foi de
7,4%. Apenas no último mês de setembro, foram contabilizados 198 casos em todo
o Ceará - uma média de quase sete abusos por dia.
Os
números ganham maior amplitude em um contexto no qual há denúncias de crimes
sexuais ocorridos dentro da Universidade Federal do Ceará (UFC), no Campus do
Pici. Os reflexos do aumento no índice são sentidos não apenas pelas vítimas de
estupro, como também por especialistas que atuam no acolhimento a essas pessoas
e buscam, nos relatos dolorosos, uma forma de ajudar.
"Crimes
sexuais, geralmente, são subnotificados. Não é como homicídio, que você
encontra um corpo na rua. Eles dificilmente deixam marcas visíveis. Quando se
pensa em 198 (crimes) no Ceará, em setembro, eu diria que é muito
subnotificado, porque a grande maioria das mulheres e das crianças não
denuncia", explica a socióloga Irlena Malheiros, integrante do Laboratório
de Estudos da Violência (LEV), da UFC.
A
pesquisadora avalia que o número de registros não representa, necessariamente,
um aumento de casos, pois a estimativa é de que, pelo menos, 30% das
ocorrências não são registradas. "O que pode ter acontecido? Alguma
campanha realmente pode ter surtido algum efeito, mas não vi nenhuma com
impacto suficiente para que isso acontecesse".
Em
nota, a SSPDS informou que o aumento de registros se deve "à ampliação dos
canais de denúncia disponibilizados para a população, além de campanhas de
incentivo a denúncia". O órgão argumenta que realiza "trabalhos
contínuos para combater crimes sexuais no Estado, com ações para prevenir esses
tipos de delitos, por meio de trabalho investigativo e de inteligência".
Conhecimento
Conforme
a defensora pública e supervisora do Núcleo de Enfrentamento à Violência Contra
a Mulher (Nudem), Jeritza Braga, há mudanças na sociedade com relação ao
tratamento dado à mulher. "A população está começando a dar esse olhar
mais cuidadoso pras mulheres, com campanhas de maior visibilidade, ações, e
isso é muito positivo para que elas tomem conhecimento", avalia, ao
ressaltar a força do empoderamento feminino.
A
sede do Nudem, na Casa da Mulher Brasileira, em Fortaleza, oferta serviços de
acolhimento e assistência jurídica para a vítima de violência. O órgão
acompanha os processos relacionados e realiza educação em Direito que, juntos,
podem dirimir os medos sentidos pela imposição de gênero. "A Lei só vai
mudar uma sociedade quando as pessoas tomarem conhecimento, tiverem educação e
souberem dos seus direitos, para poder efetivá-los", acredita a defensora.
Irlena
Malheiros afirma que a principal vítima de crimes sexuais é uma mulher com
desconhecimento dos seus direitos; e o agressor, um homem. "O crime,
geralmente, acontece no ambiente familiar. Por exemplo, um pai, um tio, um
vizinho, um conhecido". Contudo, os casos de crimes denunciados na UFC
mostram, assim como a história de Hera (nome fictício), que o perigo também
pode estar na rua.
Hera
Aos
13 anos, Hera não foi violada por pai, tio, vizinho ou conhecido. Embora o
ambiente familiar não fosse tão saudável em razão de o pai ser alcoolista e
usuário de drogas, em janeiro de 2015, a jovem foi estuprada por um
desconhecido.
A
menina havia saído para um show no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.
Antes, porém, tinha combinado de passar a tarde com as amigas nas proximidades
do local. Quando elas foram embora, ainda antes da apresentação, Hera ficou
sozinha. "Um cara me abordou e perguntou onde seria o show. Só que, como a
capinha do meu celular era transparente e o ingresso estava atrás, achei que
ele tinha falado comigo porque já sabia".
Mais
velho, aparentando ter cerca de 45 anos, ele seguiu a garota, que confirmou,
por medo, para onde iria. Ele passou a noite ao lado dela, fiscalizando
contatos via celular e a seguindo pelo ambiente. "Em certo momento do
show, ele me arrastou. Lembro de todos os detalhes daquele dia. Ele me levou
pro Centro (bairro), pediu um táxi e a gente foi entrando de motel por motel
até que encontrou um que não precisava de identidade".
"Eu
pedia por tudo que era mais sagrado, pelo amor de Deus, para ele não fazer
nada. Só que acabou acontecendo. Quando terminou, ele dizia para eu não gritar
porque seria pior", lembra Hera, com a voz embargada. O homem pediu um
táxi de volta ao lugar do show, e ela conseguiu avisar, por leitura labial, a
um grupo de mulheres que entendeu que ela havia sido estuprada.
Auxílio
Quando
a filha mais precisou do pai, o apoio não veio. Ele a chamou de 'burra' e a
ameaçou, para que não ela contasse para ninguém sobre o estupro. "No outro
dia, ele me expulsou de casa porque achava que eu estava mentindo quando eu
disse que tinha sido forçada. Eu tive de mentir dizendo que tinha ido porque
queria mesmo, senão não teria onde morar".
Desde
que o caso aconteceu, há quatro anos, Hera não foi a um núcleo de defesa de
adolescentes, a delegacias ou ao médico para retirar qualquer dúvida sobre
possível contágio por Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST).
Para
Marina Araújo, assessora técnica do Centro de Defesa da Criança e do
Adolescente (Cedeca), "não há prevenção nem debate e fortalecimento da
vítima para a denúncia. Os canais precisam estar bem fortalecidos".
Conforme a profissional, também faltam casas de apoio para crianças e adolescentes
na Capital e no interior.
Segundo
Marina, as políticas de violência sexual precisam ser priorizadas no orçamento
público. "Tem que ter medidas de urgência, de cessação da violência,
reparação dos direitos das vítimas e responsabilização dos agressores".
A
Secretaria da Segurança, por sua vez, pontuou que os casos que envolvem
crianças e adolescentes são tratados pela Delegacia de Combate à Exploração da
Criança e do Adolescente (Dceca). "Os atendimentos às vítimas na Delegacia
são realizados por policiais civis e pela equipe do Programa Rede Aquarela,
composta por psicólogos e assistentes sociais", afirmou, em nota.
Para
a socióloga Irlena Malheiros, há mudanças a serem feitas nos sistemas de
prevenção e repressão do crime. "É pensar políticas para mulheres e homens
que mostrem que os corpos feminino e infantil não são objetos, em mais
campanhas de conscientização que durem o ano inteiro". Ela também cita a
importância da educação sexual, desde a infância e durante a adolescência, para
mostrar que "o corpo é dela (mulher) e ninguém pode tocar sem sua
permissão".
Repressão
Sobre
a repressão, Malheiros acredita que "passa por uma educação do policial na
formação. Eles são preparados para atirar, combater o crime na rua, mas eles
não são preparados para atender a esses crimes mais assistenciais, de bater
numa mulher, eles aprendem na prática, com pessoas mais velhas". Conforme
a socióloga, deveria-se aumentar o número de policiais nas delegacias
especializadas e expandi-las para o interior.
A
SSPDS informou que dispõe de dez Delegacias de Defesa da Mulher (DDM),
distribuídas pelo Estado e que as unidades "possuem corpo profissional
dotado com policiais capacitados". A Instituição ainda ressalta que o
Núcleo de Atendimento Especial à Mulher, Criança e Adolescente (Namca), da
Perícia Forense do Ceará (Pefoce), atende, em média, 100 vítimas por mês.
Ainda
de acordo com a Pasta, as denúncias de crimes sexuais podem ser registradas nas
delegacias especializadas, por meio do Disque 100 ou pelo 181. Sigilo e
anonimato são garantidos. Diário do Nordeste
Nenhum comentário:
Postar um comentário