segunda-feira, 27 de julho de 2020

Cearenses têm maior influência genética de povos nórdicos do que de índios e negros

Thor, de 6 anos, é resultado da mistura do dinamarquês Peter com a
cearense Ana Paula. (Foto: Fabiane de Paula)
Se você pudesse apostar na origem do povo cearense, para qual região do mundo apontaria? Muitas pessoas diriam, sem dúvidas, que os principais ancestrais são indígenas - afinal, o próprio escritor José de Alencar descreveu o mito de fundação da identidade brasileira em "Iracema". Contudo, uma pesquisa inédita de mapeamento genético no país revela que os ameríndios têm a segunda maior predominância na origem do cearense. Em primeiro, estão os genes dos nórdicos que habitaram o norte gelado da Europa.

A pesquisa "GPS-DNA Origins Ceará" analisou as amostras de saliva de 160 cearenses, de todas as regiões do Estado e de várias etnias, a fim de mapear os povos que formaram essa população. Um dos objetivos era responder à pergunta-chave dos estudos de Parsifal Barroso no livro "O Cearense", lançado em 1969. À época, o autor se valeu de documentos e outros registros para construir sua teoria, mas, 50 anos depois, a tecnologia permitiu uma análise mais profunda das hipóteses.

Luís Sérgio Santos, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenador da pesquisa, explica que o resultado foi obtido a partir da metodologia GPS-DNA, criada pelo geneticista israelense-americano Eran Elhaik, consultor no estudo cearense. As amostras de saliva foram cruzadas com um banco de dados em laboratório, nos Estados Unidos, e permitiram a identificação de 28 grandes agrupamentos genéticos, chamados de "bolsões".

"A colonização do Brasil veio da Península Ibérica, mas a pesquisa, de certo modo, desconstrói essa tese. Ela mapeia até o ano 400, então é um tempo muito anterior à fundação de Portugal. Os resultados mostram que o branco europeu que colonizou o Brasil era escandinavo, viking, visigodo, e antes disso, alemão", explica o pesquisador, reforçando: "Por serem predadores, destruidores e impassíveis, eles deram um banho genético na Europa". 

As regiões que tiveram mais força na identidade cearense foram o sul da França e a chamada Fenoscândia - que abrange Noruega, Suécia, Finlândia e Dinamarca. Na segunda posição do ranking da maior influência genética, fica o ameríndio, que provém da Sibéria e entra no novo continente por meio do Estreito de Bering, ponte natural entre a Rússia e os Estados Unidos. 

Aos seis anos de idade, Thor representa bem essa mistura. Ele é filho do dinamarquês Peter Aller com a cearense Ana Paula Bertuleza, que acredita ter sangue indígena e negro. O pai ficou surpreso com a similaridade entre as duas populações, já que acreditava que portugueses e holandeses seriam os maiores influenciadores no Ceará. "O cruzamento de portugueses e vikings é a origem mais plausível", considera ele. 

Segundo Ana Paula, a compatibilidade genética de Thor "é mais pro lado nórdico". "Fisicamente, ele é completamente o pai, mas ele também tem muito um jeito cearense porque gosta de comer farofa e feijão preto e de ir para as dunas", ri a administradora. "Dentro de casa, ele é dinamarquês" - o menino fala três idiomas -, "e do lado de fora é cearense". A mãe lembra que o filho pratica kitesurf e não tem medo do mar - provavelmente outra herança dos ancestrais navegadores. 

Para o médico Evangelista Torquato, especialista em reprodução humana e responsável técnico da pesquisa, o levantamento pioneiro atende a dois pontos. O primeiro, da velha curiosidade sobre a pergunta "de onde eu vim?". O segundo, do uso prático das informações pela Medicina. "Determinadas comunidades no mundo têm certos tipos de doenças, como judeus e negros. O próprio Nordeste cearense tem doenças genéticas mais específicas que estão na nossa ancestralidade" 

Raízes indígenas 
Mas se o Ceará tem predominância de ancestrais europeus, por que não há tantos cabelos loiros e olhos mais claros? A resposta, conforme Luís Sérgio Santos, está na dominância de genes. "O nosso índio tem uma genética muito forte. Ele 'dilui' o branco e cria o pardo. Esse gene ameríndio está em todos nós, em maior ou menor quantidade", garante. 

O pesquisador acrescenta que os dados genéticos "só se sustentam" se tiverem amparo em levantamentos históricos para explicar os fluxos migratórios ao longo dos séculos. Por exemplo: o estudo mostra que, apesar da contribuição histórica na formação do brasileiro, o negro não teve tanta força no Ceará. As maiores influências são de bantos do Congo, na África subsaariana, e de outro povo que habitava a ilha de Madagascar. "Ele faz um fluxo interno no continente africano e acaba chegando por meio da escravidão". 

Uma hipótese para a baixa influência do negro no Estado está na própria leitura de Parsifal Barroso. "O Ceará demorou muito a ser colonizado e é envolto por serras, o que o autor acha que retardou o processo de colonização. Além disso, nossa mão de obra era mais indígena. Quem cuidava da pecuária eram os índios, e praticamente não tinha agricultura por causa da seca", conta Luís Sérgio. 

Jeovany Férrer, integrante da Associação dos Remanescentes de Quilombos de Alto Alegre e Adjacências (Arqua) e mestrando em Antropologia, acredita que a pesquisa pode dar pistas de onde veio Negro Cazuza, de quem descende a comunidade quilombola de Horizonte. Até agora, os registros dependiam da memória de membros mais velhos do africano. 

Porém, para ele, a identidade é forjada não só pelo DNA ou pelo sangue. "Muitos elementos são acionados para a nossa formação, seja o passado, a religiosidade ou a luta dos antepassados. Eles contribuem para alicerçar essa identidade negra, que passa a ser reelaborada também com afirmação política", argumenta. 

Segundo o médico Evangelista Torquato, embora a regressão tenha remontado mil anos atrás, "pode-se avançar ainda mais". "É totalmente possível fazer um mapeamento do povo brasileiro. Podemos ter outras surpresas", adianta, salientando que a Região Sul do País tem características bem distintas da amazônica, por exemplo. 

Quem se orgulha das próprias raízes é Maria de Lourdes da Conceição Alves, a Cacique Pequena. A liderança dos índios Jenipapo-Kanindé, uma das cearenses com amostra colhida para a pesquisa, faz questão de dizer que a Lagoa Encantada e o Saco do Marisco, em Aquiraz, abrigam a sétima geração de seu povo. Se, há algumas décadas, havia de cinco a oito casas na Lagoa, hoje são 130 famílias habitando a área.

"A gente tem que lembrar que é índio, que nasceu aqui e não pode deixar de ser, que não pode ser um branco lá de fora. A gente se preserva na dança, nas falas, de geração em geração. Vivemos dentro dessa união, dessa harmonia. E eu venho arrastando o tronco velho do povo que viveu há mil anos atrás", ressalta a cacique de 75 anos. Tremembés, pitaguarys e canindés foram outros povos indígenas que contribuíram com a pesquisa. 

O ex-governador do Estado, Gonzaga Mota, 77, também forneceu material genético para o estudo. De linhagem inglesa por parte de mãe e portuguesa, pelo lado do pai - segundo conversou com os genitores -, ele destaca a importância antropológica, histórica e cultural da pesquisa. "Considero uma iniciativa extremamente válida porque preserva a nossa memória", declara. 

Para Igor Queiroz Barroso, presidente do Conselho Administrativo do Grupo Edson Queiroz e neto de Parsifal Barroso, desvendar a origem do cearense por meio da ciência é uma forma de compreender não só o passado, mas o presente. "A origem vem para você poder revelar, se aproximar da verdade. Será que a Caatinga é que forma o cearense? Sou um judeu brasileiro por isso ou por aquilo? Tenho braquicefalia porque venho de determinada raça ou porque durmo na rede? Isso é ciência, trazer respostas através de testes", pontua. 

Além da contribuição científica, a conclusão do estudo é uma realização pessoal para Igor, pois expandiu os horizontes já indicados pelo avô. "A pesquisa retorna 40 mil anos, antes dos nossos colonizadores. Vai muito além do que Parsifal imaginou que se poderia chegar. Estou trazendo a pesquisa do meu avô um pouco mais próxima da verdade, e me sinto feliz por isso", celebra.                         Fonte: Diário do Nordeste

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