domingo, 12 de março de 2023

Ceará tem mais de 8 mil registros de crianças sem nome do pai na certidão


Francisco Neilton, de apenas 8 anos, guardava em sua história uma lacuna preenchida apenas recentemente, em fevereiro deste ano: ter o nome do pai na certidão de nascimento. Criado pela avó paterna, Maria Nair de Sousa Pereira, em Ipu, na Serra da Ibiapaba, o menino teve finalmente o espaço em branco corrigido. A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente garantem que toda criança tem o direito de ter o nome do pai em seu documento de registro. Ainda assim, para muitos pequenos e pequenas cearenses, a garantia não se concretiza no documento que levarão por toda a vida.


Conforme dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) levantados pelo OPINIÃO CE, somente em 2022, das 114.006 crianças nascidas no Ceará, 8.176 não tiveram o registro paterno em suas certidões de nascimento. Este é o maior número da série histórica, iniciada em 2016, onde, dos 96.059 nascidos, à época, 5.830 tiveram pais ausentes. Entre 2021 e o último ano, o Estado teve um aumento de 233,73% em ações para inclusão do nome do pai no documento. Somente em 2022, mais de 9 mil ações foram iniciadas nos núcleos de atendimento. Fortaleza lidera o ranking das cidades com maior número de processos (46,84%), seguida de Juazeiro do Norte (8,43%) e Maracanaú (8,01%).


Até fevereiro de 2023, o Ceará já registrou 1.330 pais ausentes entre as 17.644 certidões que constam no levantamento.


23 DE FEVEREIRO


Maria Nair, avó de Neilton, cuida dos três netos desde que os pais se separaram e a nora foi morar no Rio Janeiro. Seu filho, pai das crianças, atualmente cumpre pena na Penitenciária Industrial Regional de Sobral, no Ceará. Fora da cidade na ocasião do nascimento de Neilton, a criança ficou apenas com o nome da mãe. Desde então, a avó acabou sendo o pai e mãe dos três, e já vinha lutando há sete anos para atualizar o documento do neto.


“Francisco [Neilton] sempre foi muito inteligente e curioso. Aprendeu a ler cedo e, vendo as certidões das irmãs, uma tem 10 anos e a outra, 11, perguntava por que a dele não tinha o meu nome, já que ele me chama de mãe, e nem a do pai dele. Expliquei a história para ele, resguardando as partes mais críticas, e daí foi um desejo que só aumentava a cada ano”, lembra Nair.


No último dia 23 de fevereiro, Francisco Neilton realizou o sonho de ter o nome do pai na certidão. Foto: Arquivo Pessoal

Além da lacuna paterna no registro de nascimento, Nair também teve que enfrentar as dúvidas das pessoas sobre o menino ser seu neto, afinal, sem o registro completo, ‘nem ela e nem o pai existiam’. Somente a mãe e avós maternos constavam na certidão da criança. “Quando eu chegava nos locais com ele, as pessoas falavam: como tu diz que ele é teu neto se não tem como comprovar, se ele não tem o nome do pai no registro?”. Nair percebeu que o neto também sofria com a situação.


“A diretora da escola entrou em contato comigo, pois Francisco, que era um menino ativo, estava miúdo nos últimos meses, chegando até a chorar em sala. É saudade do pai. Ele só pode visitá-lo, em Sobral, com o novo documento”.


A tão aguardada regularização veio do Fórum da cidade de Ipu. A defensora pública Clara Paiva ouviu a história da família e o apelo feito pelo próprio menino. “A avó me informou que, como ele não tinha o registro paterno, não conseguia levá-lo com as irmãs para visitar o pai. Francisco chorou muito na minha frente e disse que isso era o sonho dele”, conta Clara, que acionou, de imediato, o defensor da Comarca de Ipú, Samuel Marques, para auxiliar no caso.


Com o apoio dos dois, no último dia 23 de fevereiro, Francisco Neilton pôde finalmente realizar o sonho de ter o seu direito garantido. Enquanto aguardava a chegada dos promotores no Cartório de Ipu, a ansiedade tomou de conta do menino. “Ele chorou muito, abraçou os defensores e fez questão de levar na mão sua nova certidão até em casa”. conta Nair, emocionada. “Foi graças a uma grande corrente do bem que conseguimos realizar o sonho do Neilton, de não só ter o nome do pai em seu registro, como de poder agora visitá-lo. Ele ficou muito feliz no dia da entrega”.


SITUAÇÃO NO CEARÁ


O Defensor da Comarca de Ipú, Samuel Marques, destaca que o cenário, de registros sem o nome do pai, é muito mais comum no interior do Estado, “principalmente por conta do desconhecimento das famílias e porque, ainda hoje, muitos nascimentos não são feitos nos hospitais. São nascimentos realizados por parteiras, na casa da família”, explica. “Por isso, esse nascimento geralmente não é acompanhado já do ato registral, e se registra apenas a declaração de nascido vivo, no cartório”.


Entre as dificuldades que agravam o cenário, segundo Samuel, estão a falta de um serviço de saúde adequado, ausência de estrutura cartorária nas maternidades, além do desconhecimento da população que, em muitos casos, segundo o promotor, perde o prazo para registrar a criança – de até 15 dias após o nascimento. Além disso, há o contexto de uma sociedade patriarcal, com forte presença do machismo nas relações, o que também pode acarretar na falta do nome do pai nos registros.


‘A MEMÓRIA DELE ESTARÁ CONOSCO’


A assistente de logística Lilian Damaris Alves Monteiro, de 25 anos, moradora do bairro Benfica, em Fortaleza, viveu uma situação delicada para registar a filha, Ana Liz, que nasceu em maio do ano passado. Seu companheiro, Jimmy Victor Oliveira, acabou falecendo prematuramente decorrente de um quadro de coma irreversível, após algumas semanas do nascimento da filha. A internação aconteceu dias antes de Lilian dar à luz.



Com a perda, a assistente se debruçou em pesquisas pela internet para buscar informações de como registar a filha, cujo pai havia falecido. Junto à Defensoria Pública, Lilian seguiu as etapas do processo para entrada no pedido de reconhecimento paternal, onde teve, inclusive, direito a fazer o exame de DNA, sem arcar com os custos. O processo segue em tramitação na 17ª Vara de Família do Fórum Clóvis Beviláqua, em Fortaleza. Segundo a mãe, o registro do pai tem uma importância fundamental na vida da filha, que tem atualmente nove meses.


“Por meio do registo, garanto que a minha filha poderá acessar serviços de saúde e educação, por exemplo. Isso perpassa a questão dos direitos. Quando minha filha crescer, ela não terá apenas uma memória de fotografia. Sempre que olhar o seu registro, o nome do seu pai estará lá. É importante ela não somente saber quem é o seu pai, como ter o seu sobrenome. Meu esposo sonhava em ser pai e é uma forma dele está conosco. Ao ter esse registro efetuado, a memória dele estará guardada conosco. Esse reconhecimento paternal está relacionado ao afeto, memória e direito”, destaca Lilian, emocionada.


Em caso de pai falecido, a legislação propõe que seja feita uma ação de investigação de paternidade ‘post mortem’, demandando os parentes mais próximos do pai falecido a realizarem o exame de DNA. Além disso, é somente por meio da certidão de nascimento que os direitos da criança são assegurados, como recebimento de pensão alimentícia, herança, inclusão em plano de saúde, previdência ou até mesmo regulamentação de convivência.


REGULAMENTAÇÃO


Famílias que tenham casos de ausência paterna em documentos de registro podem procurar qualquer núcleo da Defensoria Pública, tanto na Capital como no Interior. Por meio do órgão, é possível realizar a inclusão do pai na certidão de nascimento, lavrar registros das pessoas que não o tenham, ou até corrigir determinados erros no registro, como nome errado de pai ou sobrenomes. A Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ) desburocratizou o reconhecimento tardio espontâneo de paternidade, permitindo que ele seja realizado em qualquer cartório de registro civil, nos casos em que há a concordância do pai.


Para que todo o procedimento seja realizado no cartório, o pai deve concordar ou requerer o reconhecimento de paternidade tardia espontânea. A mãe, por sua vez, deverá acompanhar a manifestação desta informação, em caso do filho menor de idade, e ambos deverão estar munidos de seus documentos pessoais originais e a certidão de nascimento original do filho.


Todas as informações podem ser obtidas por meio dos canais oficiais da Defensoria. No site, é possível conferir o contato específico de cada núcleo especializado, inclusive dos que se localizam no interior do Estado. Outra forma de contato é por meio do número 129, o Alô Defensoria, canal de comunicação da instituição para esclarecimentos e orientações.


Fonte: Opinião CE

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