Morador do município de Trairi há 25 anos, localizado a cerca 368 km de Fortaleza, Antônio Tomás acorda às 5h de segunda-feira para pegar a “topic” que passa na rua de casa em direção a Fortaleza, onde trabalha como marinheiro de convés no Porto do Mucuripe. Em casa, dois filhos, a esposa e a sogra aguardam pelo seu retorno, que só ocorre na sexta. A rotina do portuário é a mesma há cerca de dois anos. Para o trairiense, a distância da família “é difícil”, mas ele “precisa trabalhar”. Assim como Tomás, outros moradores da localidade também devem realizar a viagem de três horas devido ao trabalho na Capital. Alguns caminham durante 15 minutos para poder chegar à parada mais próxima de casa. Outros nem subir na “topic” conseguem, devido à lotação, caso que já ocorreu com o marinheiro. Na situação, ele teve que pegar um carro de “lotação”, apenas no outro dia.
“A gente que trabalha sofre muito, chega no trabalho atrasado ou falta, porque não consegue embarcar mais… é muito sacrifício ‘encarar’ essas topics para trabalhar em Fortaleza”, conta.
A realidade não é única do município e Trairi. Segundo a Agência Reguladora do Estado do Ceará (Arce), 19 cidades cearenses não possuem o serviço de ônibus intermunicipal. Essa ausência, conforme o órgão, se deve a não inscrição das empresas que atuam no Estado nas licitações lançadas pela Arce. Como meios de transporte alternativo, a população dos municípios podem utilizar as vans – ou “topics” -, que também são regularizadas pela Arce. A outra alternativa são as “lotações”, meio de transporte em que automóveis particulares realizam o trajeto. Os 19 municípios somam, juntos, 331.862 habitantes.
Segundo a Prefeitura de Trairi, chegou a ser enviado um ofício à Arce ainda em 2022. À época, a Agência já estava realizando o seu segundo processo licitatório – no primeiro, não teve êxito.
“Ocorre que a Arce já está no segundo processo licitatório para a concessão do Serviço Público Regular Interurbano de Transporte Rodoviário Intermunicipal de Passageiros, que se refere às áreas 2A e 2B (linhas curtas), visto que o primeiro processo licitatório, realizado em 2020, não obteve êxito, fazendo com que a equipe técnica estudasse um novo modelo de rede e tarifa para reformulação do Edital”, explica o documento obtido pela reportagem. A segunda licitação, aliás, também não teve êxito.
ROTINA
A ‘topic’ tem hora marcada para sair e para voltar. Do Mundaú, distrito de Trairi, partem apenas duas topics (ou vans) por dia. Em uma delas, a passagem custa R$ 45 – R$ 15 mais caro do pago anteriormente para embarcar no ônibus intermunicipal. O transporte sai às 7h de Fortaleza e vai até a Praia de Baleia, no município de Itapipoca, a cidade vizinha. O mesmo veículo retorna para a Capital, às 13h, partindo da Praia da Baleia. Já o outro automóvel da linha, cuja passagem custa R$ 35, deixa a localidade de Canaã, no Trairi, às 5h, e parte em direção a Fortaleza, retornando às 14h.
Os trajetos são feitos em mais de 3 horas, com veículos sem ar-condicionado e, em alguns casos, com passageiros ’em pé’. O caminho se torna mais longo e desconfortável. “As topics são muito deficitárias, não possuem conforto nenhum”, confessa Juscelino Gonçalves, morador da localidade de Mundaú, no Trairi. Segundo o morador, Trairi possuía o serviço até o ano de 2022. “Quando chegou o governo do Cid Gomes [PDT], houve uma licitação e mudaram a empresa”. De acordo com Juscelino, nos últimos anos, essa nova empresa deixou o município e o transporte passou a ser ofertado por outra operadora. “No início de 2022, a empresa desistiu e o município ficou sem o serviço de transporte”, lembra Juscelino.
Caso queira viajar fora dos horários disponibilizados pelas topics, o morador deve pegar uma “lotação”. “[A pessoa] consegue viajar em outro horário se vier de lotação, por exemplo, de carro particular. “Mas eu acho que não é uma boa pedida, porque quem faz uma lotação ou um frete vai cobrar mais caro. Além disso, o serviço não atende como o ônibus. O ônibus é uma coisa mais confortável, tem seguro, tem tudo. É muito melhor”, destaca Juscelino. “[Poderia haver um consórcio] entre os municípios e o Estado, ou entre os municípios, o Estado e a União, uma vez que eu imagino que esses ônibus não atendam porque talvez não dê lucro. Mas o poder público poderia subsidiar alguma medida, porque o pessoal está sofrendo”, completou.
‘MESMO COM O SERVIÇO’
Mesmo em cidades em que há o serviço intermunicipal tradicional, a rota dos veículos nem sempre alcança toda a população. Josinete Rodrigues, de 52 anos, mora em Caucaia, na Grande Fortaleza, mas tem família na localidade de Cemoaba, no município de Tururu. Segundo ela, o antigo trajeto do ônibus da linha Fortaleza – Tururu seguia até a localidade, cerca de 17 km depois da sede. “Quando tinha esse ônibus que fazia esse trajeto a gente tinha o privilégio de pelo menos uma vez por ano visitar a família”, disse. A empresa que presta o serviço, no entanto, restringiu o trajeto até a sede. Segundo Josinete, desde que o meio de transporte foi retirado, tem sido “muito mais dificultoso” visitar seus parentes, já que, além da passagem do ônibus que vai até Tururu, precisa pagar uma segunda viagem, em transporte alternativo ou de carro.
“Essa linha tinha tantos passageiros que saia um de manhã e um à tarde. Eram ao menos dois ônibus por dia nessa linha. Foi cortado tudo. Imagina a dificuldade que ficou para quem não tem veículo e quem não tem condição de pagar uma lotação”, questiona.
‘DESINTERESSE’
O professor de Engenharia Civil da Universidade Federal do Ceará (UFC), Mário Azevedo, doutor em Engenharia de Transportes pela Universidade de São Paulo (USP), explica que há um desinteresse por parte das empresas, não só no serviço intermunicipal, mas também no ônibus urbano. “A demanda está baixa e a receita não está cobrindo os custos. É o que as empresas dizem”, explicou. “Então, não é interessante assumir essa questão e depois não ter condições de operar o serviço”.
Ainda conforme o engenheiro, no entanto, o serviço é necessário, já que “não é todo mundo que tem possibilidade de pagar mais caro ou de ter um carro”. O professor falou o que poderia ser feito pelo poder público para suprir essa necessidade. “Talvez seja necessário ter um subsídio. Os Governos estadual ou federal poderiam colocar algum dinheiro para manter pelo menos um serviço mínimo, razoável, para que essas pessoas sejam transportadas”, opinou. Ao todo, 9 empresas atuam no serviço de ônibus intermunicipais no Ceará: Anfrolândia; Expresso Guanabara; Gontijo; MS Viagens e Turismo; São Benedito Auto Vias; São Paulo; Via Metro; Viação Princesa dos Inhamuns; e Vitória.
PROCESSO DE LICITAÇÃO
Conforme a Arce, está sendo elaborado um novo modelo de delegação, editais e propostas de alteração legal para que novas operadoras possam atender as regiões. A expectativa, de acordo com a agência, é de que um novo certame ocorra ainda em 2023. No início do ano, além dos 19 municípios que não possuem os ônibus intermunicipais, outros seis não contavam com a operação: Moraújo, no Sertão de Sobral; Redenção e Acarape, no Maciço de Baturité; Guaiúba e Pacatuba, na Grande Fortaleza; e Quixelô, no Centro Sul.
Segundo a Arce, Moraújo e Quixelô estão inseridos em uma área com transportadora regulamentada e, a partir de maio de 2023, retornou uma programação operacional com mais horários ofertados na área, incluindo nos municípios. Em Guaiúba e Pacatuba, o atendimento é feito pelo serviço metropolitano, e também a partir de maio, foi retomada uma programação com mais horários. Redenção e Acarape, no Maciço de Baturité, fazem parte de região sem operador, mas foi autorizado, ao operador de Guaiúba e Pacatuba, a realizar a extensão da linha regular dos municípios.
Apesar das dificuldades, segundo o Ministério Público do Ceará (MPCE), não houve nenhuma denúncia envolvendo a ausência de ônibus intermunicipais em tais cidades. De acordo com Hugo Porto, coordenador auxiliar do Centro de Apoio Operacional da Cidadania (Caocidadania), as promotorias do órgão possuem atribuições para a “defesa da cidadania, da regularidade e qualidade dos serviços públicos e de utilidade pública em cada comarca”. Além delas, os centros de apoio, como a Caocidadania, também possuem a “missão de articular a efetivação de direitos e políticas públicas com entes públicos e privados”.
Fonte: Opinião CE
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