Foto: Foto: Cid Barbosa/Arquivo |
Novos documentos históricos e até uma lei do Piauí reconhecem os territórios em litígio como de propriedade do Ceará. É o que aponta nota técnica elaborada pelo Governo do Estado, divulga nesta quinta-feira (9). Ao todo, áreas de 13 municípios cearenses são alvos da disputa interestadual.
O conflito já se arrasta por mais de 300 anos, mas foi levado à Justiça em 2011 pelo estado do Piauí, que passou a reivindicar no Supremo Tribunal Federal (STF) uma área de aproximadamente 3 mil km² de parte dos municípios de Poranga, Croatá, Tianguá, Guaraciaba do Norte, Ipueiras, Carnaubal, Ubajara, Ibiapina, São Benedito, Ipaporanga, Crateús, Viçosa do Ceará e Granja.
Na ação, o estado do Piauí apresenta documentos para embasar a tese, com foco principalmente no decreto imperial de 1880, e, mais recentemente, no mapa de Gallucio, de 1761. O arquivo foi acrescentado ao processo em 2020, depois que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizou, em 2012, um trabalho técnico de delimitação da divisa entre os estados, com base em análise histórica-documental, aspectos geográficos, culturais, sociais e trabalho de campo devido à solicitação da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal da Advocacia Geral da União. Na época, os entes tentavam um acordo extrajudicial.
Mais de 240 mil cearenses podem ser impactados caso a decisão seja favorável ao Piauí.
Como o resultado da perícia do IBGE foi favorável ao Ceará, comprovando que os territórios eram cearenses, o Piauí deu continuidade a ação no STF (ACO 1831).
Agora, é o Exército quem vai fazer uma nova perícia técnica, em quatro fases: planejamento; imageamento e coleta de dados; análise de dados históricos; e geração de produtos periciais. O trabalho deve ser concluído até maio de 2024 e deve ser acompanhado por técnicos indicados pelas procuradorias de ambos estados.
Para fortalecer a defesa das localidades, o Governo cearense, por meio da Procuradoria-Geral, realizou um estudo aprofundado em documentos históricos, mapas e leis de criação de municípios, bem como estaduais. Com isso, a nota reuniu novos documentos que demonstram, "sem sombra de dúvidas", que a área de litígio "está sob o domínio do Ceará porque o Estado vem administrando estes territórios desde antes da promulgação do Decreto Imperial de 1880".
Para o geógrafo e analista de Políticas Públicas do Ipece (Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará), Cleyber Medeiros, que participou das pesquisas e elaboração da nota técnica, a medida também deve levar em conta aspectos sociais e culturais, bem como interpretações dos documentos históricos. Ele alega, ainda, que as populações das áreas em disputa se reconhecem como cearenses e, assim, desejam permanecer. Além disso, a perda territorial poderia trazer prejuízos ao Estado, já que há recursos investidos em estradas e equipamentos públicos.
LEI DO PIAUÍ RECONHECE TERRITÓRIO CEARENSE
Entre as novidades identificadas, segundo Cleyber, está uma lei aprovada e sancionada pelo Piauí, em 2013, que reconhece as atuais divisas entre os estados vizinhos. Ou seja, a delimitação da área disputada foi reconhecida pelo próprio autor da ação de litígio como sendo cearense. Trata-se da lei 6.404, de 28 de agosto de 2013.
Lei do Piauí, que reconhece os atuais limites territoriais apontados pelo IBGE. Imagem retirada da nota técnica do Governo do Ceará. Fonte: Diário Oficial do Piauí
"Identificamos essa lei, de 2013, quando a ação judicial já estava tramitando, em que o (então) governador e Assembleia Legislativa aprovaram uma legislação para delimitar Cocal dos Alves. Nessa legislação, o artigo segundo diz que o limite do estado do Piauí e do Ceará é o que consta nos mapas municipais do IBGE, ano de 2007. Esses limites são os mesmo que o IBGE usou no Censo de 2000, 2010 e 2022. São os mesmo limites reconhecidos pelo governo do Estado do Ceará como divisa"
CLEYBER MEDEIROS
Geógrafo e analista do Ipece
DECRETO IMPERIAL
Segundo a nota técnica, o imbróglio territorial histórico inicia quando o Piauí, até então vinculado ao Maranhão, passou a requisitar as terras da antiga Missão da Ibiapaba. No local, residiam os índios da nação Tabajara, que pertenciam ao Ceará, à época vinculado ao Estado do Brasil.
Em 1720, o então rei de Portugal, D. João V, expediu uma Carta Régia e estabeleceu que toda a Serra da Ibiapaba ficasse com a nação Tabajara, na capitania do Ceará, para atender o sentimento dos índios. Anos mais tarde, a então Província do Piauí reivindicou o território chamado Freguesia de Amarração (atuais municípios de Luís Correia e Cajueiro da Praia).
Em 1880, o Decreto Imperial 3.012 determinou a permuta da comarca de Príncipe Imperial (atuais municípios de Crateús e Independência), passando ela para o Ceará, enquanto o Piauí ficaria com a Freguesia de Amarração.
Decreto Imperial de 1880. Documento retirado da nota técnica produzida pelo Governo do Ceará. Fonte da nota: Casa Civil da Presidência da República
De acordo com Cleyber Medeiros, o decreto delimitou apenas a área dos dois territórios que foram trocados, não a divisa do Ceará com o Piauí como o estado vizinho reivindica.
Para provar a defesa, os pesquisadores analisaram anais da Câmara e do Senado e encontraram grifo no decreto, que não estava previsto no projeto de lei e foi incluído justamente para dar ênfase ao território alvo da divisão. Além disso, também encontraram discursos de parlamentares cearenses na época da aprovação do projeto de lei que deu origem ao decreto imperial que reforçam que só a região do sopé da serra de Ibiapaba estava sendo delimitado.
"A gente foi na Câmara e no Senado e identificamos anais históricos que deixam claros que os legisladores da época não tinham a intenção de tratar a divisa como um todo, somente nas áreas demarcadas da comarca de Príncipe Imperial e Freguesia de Amarração, deixando a serra da Ibiapaba para o Ceará como sempre foi. O Piauí utilizou a omissão dessa informação, porque a gente não tinha até achar nos anais agora, para dizer que demarcava o território todo. Por isso o IBGE reconhece a demarcação atual", explica.
O que diz o artigo 1 do decreto, alvo de divergência:
Art. 1 É annexado á Provincia do Ceará o territorio da comarca do Principe Imperial, da Provincia do Piauhy, servindo de linha divisoria das duas provincias a Serra Grande ou da Ibiapaba, sem outra interrupção além da do rio Puty, no ponto do Boqueirão, e pertencendo á Provincia do Piauhy todas as vertentes occidentaes da mesma serra, nesta parte, e á do Ceará as orientaes (ipsis litteris).
MAPA DE GALLUCIO
Sobre o Mapa de Gallucio, de 1761, que retrata o estado do Piauí, o geógrafo do Ipece ressalta que o documento é utilizado pelo estado autor da ação de litígio como "prova" de que o Paiuí sempre teve saída para o "Mar do Norte", ou seja, fazia fronteira com o Oceano Atlântico. Logo, o seu litoral era maior e o que foi concedido pelo Ceará, referente a Freguesia de Amarração (Luís Correia e Cajueiro da Praia), já era do ente.
Todavia, Cleyber explica que vários documentos históricos mostram o território de Amarração como cearense, como o "Mara da Costa do Brasil" e o Censo Demográfico de 1872 — primeiro feito no Brasil. Ele ressalta, ainda, que o próprio governador da então Província do Piauí, em 1809, determinou a correção do mapa porque o trabalho do engenheiro Henrique Gallucio teria sido embasado em "informações errôneas".
Fonte: Diário do Nordeste
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