Professora Fanka Santos (UFCA) participa de evento integrante do Ano do Brasil na França, em fevereiro de 2025. Foto: Mylene Contival - Université de Poitiers |
A professora Fanka Santos, do curso de biblioteconomia da Universidade Federal do Cariri (UFCA), está, neste início de 2025, a convite da Universidade de Poitiers, na França, ministrando aulas (em português) sobre literatura de cordel para a comunidade acadêmica local – que “supervaloriza o folheto”, segundo a docente cearense.
O cordel – reconhecido em 2018 como patrimônio imaterial brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) – é bastante valorizado na França e, segundo alguns especialistas, precisou ser reconhecido na Europa para alcançar repercussão no próprio Brasil.
O reconhecimento europeu se deveu, em muito, ao pesquisador francês Raymond Cantel (1914 – 1986), que, após várias viagens ao Brasil (e particularmente ao Ceará), ao longo de duas décadas, introduziu, na academia francesa, nos anos 1970, a obra de Patativa do Assaré: um nome difundido da cultura tradicional oral que, para muitos, atualmente, dispensa apresentações. Raymond chegou a reunir cerca de 4.000 folhetos em seu acervo pessoal, de diferentes cordelistas brasileiros.
As obras femininas no cordel e na cantoria nordestina, porém, não alcançaram a mesma visibilidade. Percebendo esta lacuna, professora Fanka pesquisou, ao longo de duas décadas, a vida e a obra das autoras de cordel e de cantoria do Nordeste. E assim nasceu, em 2023, ‘O Livro Delas: catálogo de mulheres autoras no cordel e na cantoria nordestina’.
O objetivo da obra foi evidenciar a produção de cada autora e criar uma historiografia dessas mulheres, pautando obras realizadas entre os séculos 19 e 21.
“É importante que as pessoas saibam que os olhos da universidade estão voltados para a valorização da cultura local. Além do meu trabalho e de outros, a Pró-Reitoria de Cultura da UFCA está realizando atualmente uma iniciativa de documentar os Tesouros Vivos [do Ceará]”, disse Fanka, fazendo referência aos mestres e mestras da cultura no estado do Ceará que resguardam práticas e saberes tradicionais da rica cultura nordestina.
N’O Livro Delas, destacam-se nomes, entre outros, como os de Salete Maria da Silva, Sebastiana Gomes de Almeida Job (a Bastinha), Josenir Lacerda, Maria do Rosário, Dalinha Catunda (todas conhecidas pelo grande público), como também violeiras repentistas, a exemplo de Mocinha de Passira e Minervina Ferreira – que se somam a muitas outras no campo dos poetas e repentistas do Nordeste do Brasil.
“O livro derruba o paradigma tradicional de que mulher não fazia tradicionalmente cordel ou repente. Por essa razão – e sobretudo por não haver praticamente publicações sobre autoria feminina [de cordel e cantoria] na historiografia oficial –, é que esse livro é paradigmático”, reflete professora Fanka.
Reconhecimento d’O Livro Delas pelo Prêmio RMFA, do Iphan
O Livro Delas foi uma das 30 realizações brasileiras finalista da edição 2024 do prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade (RMFA), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
O RMFA, de abrangência nacional, é promovido, desde 1987, para fomentar ações de preservação e salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro que mereçam registro, divulgação e reconhecimento público em razão de fatores como originalidade, relevância ou caráter exemplar.
Em 2024, o prêmio pautou o tema “Visibilidade de Gênero na Economia do Patrimônio”, em parceria com o Ministério das Mulheres. A ideia foi valorizar mulheres e pessoas LGBTQIAPN+ em papéis protagonistas nas redes produtivas do patrimônio.
Submetido na categoria quatro do RMFA (entidades da administração pública direta e indireta municipal, estadual ou federal), ‘O Livro Delas”, como destaca Fanka, é uma das muitas pesquisas científicas realizadas no âmbito da UFCA, voltadas à valorização da cultura caririense e, particularmente, à visibilidade de mulheres como autoras e mestras de cultura.
“É o trabalho da minha vida, né? É um trabalho [que resulta] dessa jornada de procurar a mulher autora, cantadora, repentista, xilogravadora… Então, foi imensamente importante [ser finalista do prêmio do Iphan], que é um reconhecimento dos trajetos, de toda alma, todo empenho, toda a energia que a gente coloca em uma pesquisa (quando você é apaixonada pela sua pesquisa)… e também um reconhecimento dessas mulheres. É importante que elas saibam do valor da produção artística delas no Nordeste do Brasil. É o livro delas”, afirmou.
“O Cariri é uma escola de cordel”
Para a professora da UFCA, grande entusiasta dessa cultura, o cordel sempre foi uma escola forte no Cariri e, após algumas políticas públicas, permanece “mais vivo do que nunca” na região.
Conforme a docente, no início do século 20, o poeta recifense Leandro Gomes de Barros, considerado o primeiro grande editor de folhetos, era proprietário de uma tipografia para impressão de cordéis. Após sua morte, todo o maquinário passou para o também poeta João Martins de Athayde.
Após a morte de Athayde, o material também foi repassado a outro poeta, porém, desta vez, para um natural de Juazeiro do Norte: José Bernardo da Silva, que já dispunha da sua própria tipografia, a São Francisco. Com a morte de Bernardo, nos anos 1980, a tipografia ampliada passa para a gestão do estado do Ceará, sob o nome ‘Lira Nordestina’. Atualmente, a Lira, batizada assim pelo poeta Patativa do Assaré, está sob gestão da Universidade Regional do Cariri (Urca).
Lira Nordestina. Foto: Kity Ramos
“A cultura de cordel no Cariri é muito forte. Entre os muitos projetos dessa área [na região], posso citar um que criei e coordenei, no fim da década de 1990: o Sesc Cordel”, recorda a docente.
De acordo com Fanka, esse projeto, na época, revitalizou a Lira Nordestina e lançou movimentos importantes. Um deles foi a Sociedade dos Cordelistas MaUditos: um dos primeiros movimentos decoloniais no cordel. Esse projeto foi agraciado, no ano 2001, com o mesmo prêmio RMFA, do Iphan, na categoria ‘divulgação’.
“Conseguimos, com este projeto do Sesc, trazer novas autorias, jovens poetas, xilogravadores… Então, houve uma retomada do cordel e uma efervescência no Cariri, que ainda reverbera [nos dias atuais]. Tivemos, sequencialmente, o Bando, que foi um movimento ligado às artes plásticas e ao cinema. Tivemos o Queerdel, que foi outro movimento importantíssimo, liderado pelo poeta e performer Pablo Soares, entre outros”, cita.
“Atualmente, temos movimentos das mulheres autoras de cordel no ciberespaço, com diferentes iniciativas, como os blogs ’Cordel de saia’, de Dalinha Catunda; ‘Cordelirando’, de Salete Maria; ‘Cordel sem machismo’, de Isabel do Nascimento; ‘Rede Mnemosine’, de Josy e Luciana…”, enumera a professora da UFCA.
Parceria com Université de Poitiers, na França
Na universidade de Poitiers, existe o Centre de Recherches Latino-Américaines (CRLA, ou ‘Centro de Pesquisas Latino-Americanas’). O CRLA dedica-se a “preservar, enriquecer, promover, explorar cientificamente e disseminar documentos relacionados à literatura latino-americana para a comunidade científica internacional”, como descreve a própria universidade estrangeira.
Raymond Cantel, já citado pesquisador francês, fundou o CRLA, que resguarda um acervo específico para a literatura popular brasileira: o Fundo Raymond Cantel, a maior coleção de literatura de cordel da Europa.
Cordel de Fanka Santos traduzido para o francês por Mylène Contival. Foto: Fanka Santos
O acervo mantém uma coleção com folhetos, livros, CDs, manuscritos, entre outros, reunidos, além dos esforços do próprio Raymond, com apoio de pesquisadores de 35 universidades brasileiras.
No dia 14 de fevereiro de 2025, houve na Universidade de Poitiers, o seminário Fond Raymond Cantel en Évolution: conservação, comunicabilidade e pesquisas recentes França-Brasil, que foi aberto pela professora Fanka, da UFCA.
O evento foi motivado pela doação de uma nova coleção ao CRLA/Fond Raymond Cantel, pertencente à brasilianista Sylvie Debs. Sylvie é professora da Universidade de Estrasburgo e doou uma coleção (com folhetos, cartas, fotos, xilogravuras, livros, entre outros) que resulta de mais de 30 anos de pesquisas no Brasil.
Promovido pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) e pela Maison des Sciences de l’Homme et de la Société da Universidade de Poitiers, com apoio da embaixada do Brasil em Paris, o evento, com participação de pesquisadores brasileiros e franceses, integra a programação do Ano do Brasil na França, que está tendo mais uma edição, ao longo de 2025.
Relação UFCA e Poitiers
Conforme a professora Fanka, a sua relação com a Universidade de Poitiers é antiga, e remonta ao ano de 2005.
“Eu já pesquisava o cordel quando fui convidada, pela coordenação do Fonds Cantel, que tinha como coordenadora a professora Ria Lemaire, a apresentar – em um Congresso que iria compor a programação do primeiro ano do Brasil na França – uma comunicação sobre as cartas de Patativa do Assaré endereçadas à poetisa Bastinha”, recorda.
Logo depois, em 2006, Fanka ingressou como professora no então campus Cariri da Universidade Federal do Ceará (UFC), no curso de biblioteconomia. De acordo com a professora, ela esteve à frente, junto ao CRLA/Fonds Cantel, do primeiro convênio firmado pela universidade [hoje UFCA] com uma instituição estrangeira.
“Por esse convênio, eu estive em Poitiers, no ano de 2008, no meu doutorado sanduíche. Em 2011, retornei à instituição e trouxe para a França alguns estudantes para participar de um colóquio sobre cordel e organizar, em Poitiers, o acervo que hoje compõe ‘O Livro Delas’. Em 2013, estive aqui, mais uma vez, para meu pós-doc, com a professora Ria Lemaire. Na época, também realizamos uma cooperação técnica entre a Universidade de Poitiers e a UFCA. Por essa trajetória, retorno agora, em 2025, como professora convidada, a convite das professoras e atuais coordenadoras do Fonds Cantel, as doutoras Karina Marques e Angélica Amâncio”.
Fanka doou, tanto para o Fonds Cantel quanto para a própria UFCA, dois acervos, de mesmo conteúdo, com mais de 500 títulos, com obras de autoria feminina, entre outros trabalhos: “Posteriormente, adquiri outros folhetos, de forma que, atualmente, há cerca de 700 folhetos nesta coleção”, descreve. Na UFCA, o acervo está sob gestão do Laboratório de Ciência da Informação e Memória (Lacim/UFCA), no campus Juazeiro do Norte.
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